sexta-feira, 17 de abril de 2015

Eduardo Galeano e os craques do Botafogo

“Durante a vida, um homem pode trocar de esposa, de partidos políticos, de religião, mas nunca o time de coração.” – Eduardo Galeano.

Eduardo Hughes Galeano nasceu em Montevidéu a 3 de Setembro de 1940 e faleceu na mesma cidade a 13 de Abril de 2015. Casou com Silvia Brando (1959-1962) e Helena Villagra (1976-2015), tendo três filhos: Cláudio Hughes Berro, Florência Hughes Berro e Verónica Hughes Brando.

Galeano foi escritor e jornalista oriundo de uma família católica de classe média de ascendência europeia. É autor de mais de 40 livros, traduzidos em diversos idiomas, que combinam ficção, jornalismo, política e história.

Aos 14 anos vendeu a sua primeira charge política ao jornal El Sol, do Partido Socialista e ao início da década de 1960 iniciou a sua carreira jornalística como editor do ‘Marcha’, no qual colaboravam Mario Vargas Llosa e Mario Benedetti. Foi editor do diário ‘Época’ e editor-chefe de jornal universitário. Em 1971 escreveu a sua obra-prima ‘As Veias Abertas da América Latina’ e em 1973, face ao golpe militar no Uruguai foi colocado na lista dos esquadrões da morte e temendo pelo vida exilou-se em Espanha, iniciando aí a trilogia ‘Memória do Fogo’. Em 1985 regressou ao Uruguai após o início da redemocratização.

Em 1995, no ano do campeonato brasileiro do Botafogo, Galeano escreveu ‘O Futebol de Sol a Sombra’ [publicação original: Fútbol a sol y sombra, Ediciones del Canchito, Montevideo, 1995]

“Uma manhã deram-nos de presente um coelhinho da Índia. Chegou em casa enjaulado. Ao meio dia abri a porta da gaiola. Cheguei em casa ao anoitecer e encontrei-o tal como o havia deixado: gaiola adentro, colado aos arames, tremendo de susto de liberdade” – Eduardo Galeano.

Eduardo Galeano escreveu pequenas crônicas sobre Jairzinho, Didi, Nilton Santos, Heleno de Freitas e Garrincha. Seguem-se os títulos e os textos:

Gol de Jairzinho

Foi no Mundial de 1970. Brasil enfrentava à Inglaterra. Tostão recebeu a bola de Paulo César e escorreu até onde podia. Encontrou a toda a Inglaterra grudada na área. Até a rainha estava ali. Tostão enganou a um, a outro e a outro mais, e passou a bola a Pelé.

Outros três jogadores afogaram-no no ato: Pelé simulou que seguia viagem e os três rivais se foram como loucos, mas apertou o freio, girou e deixou a bola nos pés de Jairzinho, que lá vinha.

Jairzinho havia aprendido a desmarcar-se quando tentava a vida na periferia mais dura do Rio de Janeiro: saiu disparado como uma bala negra, esquivou a um inglês e a bola, bala branca, atravessou a meta do arqueiro Banks. Foi o gol da vitória. A passo de festa, o ataque brasileiro havia tirado de cima sete algozes. E a cidadela de aço havia sido derretida por aquele vento quente que veio do sul.

“Na pátria da solidariedade não há estrangeiros.” – Eduardo Galeano.

Didi

Os jornalistas consagraram-no como o melhor criador de jogo do Mundial de 58.

Ele foi o eixo da seleção brasileira. Corpo enxuto, pescoço alto, estátua erguida de si mesmo, Didi parecia um ícone africano erguido no centro do campo. Lá era dono e senhor. Desde lá, disparava suas flechas envenenadas.

Ele era o mestre do passe em profundidade, meio gol que se fazia inteiro nos pés de Pelé, Garrincha ou Vavá, mas também fazia seus próprios gols. Disparando de longe, enganava o arqueiro com a FOLHA SECA: chutava a bola com o perfil do pé e ela saía girando e girando voava, dava cambalhotas e mudava de rumo como una folha seca perdida no vento, até que se metia entre as traves pelo ângulo aonde o guarda-metas não a esperava.

Didi jogava quieto. Assinalando a bola, dizia:

– “Quem corre é ela”.

Ele sabia que ela estava viva.

“Os meios de comunicação estão ao serviço de uma visão conformista da história.” – Eduardo Galeano.

Gol de Nilton

Foi no mundial de 58. Brasil ganhava de 1 a 0 da Áustria. No começo do segundo tempo, Nilton Santos avançou desde seu campo, o homem chave da defesa brasileira, chamado de Enciclopédia pelo muito que sabia de futebol.

Nilton abandonou a retaguarda, passou a linha central, iludiu a um par de rivais e seguiu caminho. O técnico brasileiro, Vicente Feola, corria também pela beira do campo, mas do lado de fora. Suando como um louco, gritava:

– “Volta, volta!”

E Nilton, imperturbável, continuava sua corrida até a área rival. O gordo Feola, desesperado, agarrava a sua cabeça, mas Nilton não passou a bola a nenhum centro-avante: fez toda a jogada sozinho, e a culminou com um golaço.

Então Feola, feliz, comentou:

– “Viram? Não falei? Este sim que sabe!”

“A violência engendra violência, como se sabe; mas também engendra ganâncias para a indústria da violência, que a vende como espetáculo e a converte em objeto de consumo.” – Eduardo Galeano.

Heleno

Heleno estava de costas para a rede. A bola voou de cima para baixo. Apanhou-a com o peito e virou de costas, sem deixá-la cair.

Com o corpo arqueado e a bola ainda descansando no seu peito, ele examinou a cena. Entre ele e o gol estava uma multidão. Havia mais pessoas na área do Flamengo do que em todo o Brasil. Se a bola batesse no chão ele estaria perdido.

Então Heleno começou andando e calmamente atravessou as linhas inimigas com o seu corpo curvado para trás e a bola no seu peito. Ninguém poderia batê-lo fora dele, sem cometer uma falta, e ele estava na área de gol. Quando Heleno chegou à baliza, endireitou-se. A bola deslizou aos seus pés e ele marcou o gol.

“Hitler acreditava que a praga judia era uma ameaça, e não estava só. Desde há séculos, muitos acreditaram e continuaram a acreditar que esta raça de origem obscura e cor escura guardava o crime no sangue: sempre malditos, vagamundos sem mais casa do que o caminho, violadores de donzelas, mãos de bruxas. Numa só noite de agosto de 1944 dois mil oitocentos e noventa e sete judeus, mulheres, crianças, homens, viraram fumaça nas câmaras de gás de Auschwitz. Uma quarta parte dos judeus da Europa foi aniquilada em seis anos. Quem Perguntou por eles?” – Eduardo Galeano.

Garrincha

Alguns dos seus irmãos o batizou de Garrincha, que é o nome de um passarito inútil e feio. Quando começou a jogar futebol, os médicos fizeram o sinal da cruz, diagnosticando que ele nunca chegaria a ser um desportista normal, porque era fruto da fome e da poliomielite, burro manco como o cérebro de uma criança, coluna vertebral em forma de S e as duas pernas tortas para o mesmo lado. Nunca seria um ponta-direita. Mas na Copa do Mundo de 1958 foi o melhor na sua posição. No Mundial de 1962 foi o melhor jogador da competição. Mas ao longo dos anos Garrincha foi mais do que isso: foi o homem que deu mais alegrias na história do futebol.

Quando ele estava no gramado o campo de jogo era um circo montado, a bola um animal amestrado, a partida um convite para a festa. Garrincha não deixava que lhe tirassem a bola, menino defendendo o seu mascote, e a bola e ele cometiam diabruras que ‘matavam’ as pessoas de rir; ele saltava sobre a bola, ela brincava sobre ele, ela se escondia, e se escapava, e corria. Garrincha exercia as suas picardias de malandro à beira do campo, sobre o lado direito, longe do centro da área; criado nos subúrbios, nos subúrbios do campo jogava. Jogava para um clube chamado Botafogo, que significa botar fogo, e esse clube era ele; o Botafogo que incendiava os estádios, louco por aguardente e por tudo que era ardente, ele fugia das concentrações, escapava-se pela janela, porque lá fora havia uma bola que o chamava para jogar, ou uma música que exigia ser dançada, ou uma mulher que queria ser beijada.

Um vencedor? Um perdedor com boa sorte. E não de má sorte. Bem se diz no Brasil que se a merda tivesse valor, os pobres nasceriam sem bunda.

Garrincha morreu da sua morte: pobre, ébrio e só.

Pesquisa de Rui Moura (Mundo Botafogo); Imagens dos atletas botafoguenses: Caricaturas by MAM.

Sem comentários:

John Textor, a figura-chave: variações em análise

Crédito: Jorge Rodrigues. [Nota preliminar: o Mundo Botafogo publica hoje a reflexão prometida aos leitores após a participação do nosso Clu...