“Durante a vida, um homem pode trocar de esposa, de partidos políticos, de religião, mas nunca o time de coração.” – Eduardo Galeano.
Eduardo Hughes Galeano nasceu em Montevidéu a 3 de Setembro de 1940 e faleceu na mesma cidade a 13 de Abril de 2015. Casou com Silvia Brando (1959-1962) e Helena Villagra (1976-2015), tendo três filhos: Cláudio Hughes Berro, Florência Hughes Berro e Verónica Hughes Brando.
Galeano foi escritor e jornalista oriundo de uma família católica de
classe média de ascendência europeia. É autor de mais de 40 livros, traduzidos
em diversos idiomas, que combinam ficção, jornalismo, política e história.
Aos 14 anos vendeu a sua primeira charge política ao jornal El Sol, do
Partido Socialista e ao início da década de 1960 iniciou a sua carreira
jornalística como editor do ‘Marcha’, no qual colaboravam Mario Vargas Llosa e
Mario Benedetti. Foi editor do diário ‘Época’ e editor-chefe de jornal
universitário. Em 1971 escreveu a sua obra-prima ‘As Veias Abertas da América
Latina’ e em 1973, face ao golpe militar no Uruguai foi colocado na lista dos
esquadrões da morte e temendo pelo vida exilou-se em Espanha, iniciando aí a
trilogia ‘Memória do Fogo’. Em 1985 regressou ao Uruguai após o início da
redemocratização.
Em 1995, no ano do campeonato brasileiro do Botafogo, Galeano escreveu ‘O
Futebol de Sol a Sombra’ [publicação original: Fútbol a sol y sombra, Ediciones del Canchito, Montevideo, 1995]
“Uma manhã deram-nos de presente um coelhinho da Índia. Chegou em casa enjaulado. Ao meio dia abri a porta da gaiola. Cheguei em casa ao anoitecer e encontrei-o tal como o havia deixado: gaiola adentro, colado aos arames, tremendo de susto de liberdade” – Eduardo Galeano.
Eduardo Galeano
escreveu pequenas crônicas sobre Jairzinho, Didi, Nilton Santos, Heleno de
Freitas e Garrincha. Seguem-se os títulos e os textos:
Gol
de Jairzinho
Foi no Mundial de 1970. Brasil
enfrentava à Inglaterra. Tostão recebeu a bola de Paulo César e escorreu até
onde podia. Encontrou a toda a Inglaterra grudada na área. Até a rainha estava
ali. Tostão enganou a um, a outro e a outro mais, e passou a bola a Pelé.
Outros três jogadores afogaram-no no
ato: Pelé simulou que seguia viagem e os três rivais se foram como loucos, mas
apertou o freio, girou e deixou a bola nos pés de Jairzinho, que lá vinha.
Jairzinho havia aprendido a desmarcar-se
quando tentava a vida na periferia mais dura do Rio de Janeiro: saiu disparado
como uma bala negra, esquivou a um inglês e a bola, bala branca, atravessou a
meta do arqueiro Banks. Foi o gol da vitória. A passo de festa, o ataque
brasileiro havia tirado de cima sete algozes. E a cidadela de aço havia sido
derretida por aquele vento quente que veio do sul.
“Na pátria da solidariedade não há estrangeiros.”
– Eduardo Galeano.
Didi
Os jornalistas consagraram-no como o
melhor criador de jogo do Mundial de 58.
Ele foi o eixo da seleção brasileira.
Corpo enxuto, pescoço alto, estátua erguida de si mesmo, Didi parecia um ícone
africano erguido no centro do campo. Lá era dono e senhor. Desde lá, disparava
suas flechas envenenadas.
Ele era o mestre do passe em
profundidade, meio gol que se fazia inteiro nos pés de Pelé, Garrincha ou Vavá,
mas também fazia seus próprios gols. Disparando de longe, enganava o arqueiro
com a FOLHA SECA: chutava a bola com o perfil do pé e ela saía girando e
girando voava, dava cambalhotas e mudava de rumo como una folha seca perdida no
vento, até que se metia entre as traves pelo ângulo aonde o guarda-metas não a
esperava.
Didi jogava quieto. Assinalando a bola,
dizia:
– “Quem corre é ela”.
Ele sabia que ela estava viva.
“Os meios de comunicação estão ao serviço de uma
visão conformista da história.” – Eduardo Galeano.
Gol de Nilton
Foi no mundial de 58. Brasil ganhava de
1 a 0 da Áustria. No começo do segundo tempo, Nilton Santos avançou desde seu
campo, o homem chave da defesa brasileira, chamado de Enciclopédia pelo muito
que sabia de futebol.
Nilton abandonou a retaguarda, passou a
linha central, iludiu a um par de rivais e seguiu caminho. O técnico
brasileiro, Vicente Feola, corria também pela beira do campo, mas do lado de
fora. Suando como um louco, gritava:
– “Volta, volta!”
E Nilton, imperturbável, continuava sua
corrida até a área rival. O gordo Feola, desesperado, agarrava a sua cabeça,
mas Nilton não passou a bola a nenhum centro-avante: fez toda a jogada sozinho,
e a culminou com um golaço.
Então Feola, feliz, comentou:
– “Viram? Não falei? Este sim que sabe!”
“A violência engendra violência, como se sabe;
mas também engendra ganâncias para a indústria da violência, que a vende como
espetáculo e a converte em objeto de consumo.” – Eduardo Galeano.
Heleno
Heleno estava de costas para a rede. A
bola voou de cima para baixo. Apanhou-a com o peito e virou de costas, sem
deixá-la cair.
Com o corpo arqueado e a bola ainda
descansando no seu peito, ele examinou a cena. Entre ele e o gol estava uma
multidão. Havia mais pessoas na área do Flamengo do que em todo o Brasil. Se a
bola batesse no chão ele estaria perdido.
Então Heleno começou andando e
calmamente atravessou as linhas inimigas com o seu corpo curvado para trás e a
bola no seu peito. Ninguém poderia batê-lo fora dele, sem cometer uma falta, e
ele estava na área de gol. Quando Heleno chegou à baliza, endireitou-se. A bola
deslizou aos seus pés e ele marcou o gol.
“Hitler acreditava que a praga judia era uma
ameaça, e não estava só. Desde há séculos, muitos acreditaram e continuaram a
acreditar que esta raça de origem obscura e cor escura guardava o crime no
sangue: sempre malditos, vagamundos sem mais casa do que o caminho, violadores
de donzelas, mãos de bruxas. Numa só noite de agosto de 1944 dois mil
oitocentos e noventa e sete judeus, mulheres, crianças, homens, viraram fumaça
nas câmaras de gás de Auschwitz. Uma quarta parte dos judeus da Europa foi
aniquilada em seis anos. Quem Perguntou por eles?” – Eduardo Galeano.
Garrincha
Alguns dos seus irmãos o batizou de
Garrincha, que é o nome de um passarito inútil e feio. Quando começou a jogar
futebol, os médicos fizeram o sinal da cruz, diagnosticando que ele nunca
chegaria a ser um desportista normal, porque era fruto da fome e da
poliomielite, burro manco como o cérebro de uma criança, coluna vertebral em
forma de S e as duas pernas tortas para o mesmo lado. Nunca seria um
ponta-direita. Mas na Copa do Mundo de 1958 foi o melhor na sua posição. No
Mundial de 1962 foi o melhor jogador da competição. Mas ao longo dos anos
Garrincha foi mais do que isso: foi o homem que deu mais alegrias na história
do futebol.
Quando ele estava no gramado o campo de
jogo era um circo montado, a bola um animal amestrado, a partida um convite
para a festa. Garrincha não deixava que lhe tirassem a bola, menino defendendo
o seu mascote, e a bola e ele cometiam diabruras que ‘matavam’ as pessoas de
rir; ele saltava sobre a bola, ela brincava sobre ele, ela se escondia, e se
escapava, e corria. Garrincha exercia as suas picardias de malandro à beira do
campo, sobre o lado direito, longe do centro da área; criado nos subúrbios, nos
subúrbios do campo jogava. Jogava para um clube chamado Botafogo, que significa
botar fogo, e esse clube era ele; o Botafogo que incendiava os estádios, louco
por aguardente e por tudo que era ardente, ele fugia das concentrações,
escapava-se pela janela, porque lá fora havia uma bola que o chamava para
jogar, ou uma música que exigia ser dançada, ou uma mulher que queria ser
beijada.
Um vencedor? Um perdedor com boa sorte.
E não de má sorte. Bem se diz no Brasil que se a merda tivesse valor, os pobres
nasceriam sem bunda.
Garrincha morreu da sua morte: pobre,
ébrio e só.
Pesquisa de Rui Moura (Mundo Botafogo); Imagens dos atletas botafoguenses: Caricaturas by MAM.
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