[Nota biográfica preliminar de Natalício Barroso: Nasceu em Itapipoca a 19
de dezembro de 1957, e faleceu a 26 de abril de 2022, em Fortaleza, Ceará. Foi
um brilhante poeta, jornalista e romancista, autor, entre outras obras, de
‘Poemas de Abril’; ‘Sintonia, o Velho Marinheiro, a Baía de Guanabara e a
Triste Sina do Imperial’; ‘O Capacete de Aquiles’; ‘A Vida Amorosa de Marco
Polo’; além de autor de obras sobre as Literaturas Grega e Latina, tais como
‘As Tralhas Gregas e Outras Tralhas’, ‘O Livro dos Clássicos’ e ‘As Pirâmides
do Egito e o Palpite do Ceará’.]
por NATALÍCIO BARROSO | Poeta, jornalista e romancista (1957-2022)
Excerto do livro A Casa de Gustavo, de Natalício Barroso
CONTA PAULO MENDES CAMPOS numa crônica,
que a primeira pessoa a levar Garrincha para jogar no Botafogo foi Araty, um
jogador valente, segundo o cronista, mas sem muita categoria. Um dia, continua
Paulo Mendes Campos, Araty apitava uma pelada para os lados de Magé, quando viu
aquele menino de pernas tortas jogar. Ficou tão impressionado que levou o
menino para o Botafogo imediatamente. No Botafogo, Garrincha, depois de servir
de galhofa para a maioria dos torcedores, surpreendeu a todos quando, pegando a
bola pela primeira vez, meteu-a por entre as canelas de Nilton Santos, que
nunca tinha passado por um vexame daqueles, não soube o que dizer. Vendo isso,
Gentil Cardoso, que era técnico do Botafogo àquele tempo, simplesmente escalou
o protegido de Araty para a próxima partida contra o Bonsucesso e, em seguida,
manteve o craque de Pau Grande (nome da vila onde Garrincha nasceu na cidade de
Magé, no interior do Rio de Janeiro) entre os titulares.
O que mais impressionava em Garrincha, no entanto, não era o fato de, como ponta-direita, cruzar a bola para a grande área, onde geralmente ficavam Amoroso e Quarentinha, mas, sim, o fato de, antes de fazer isso, passar, primeiro, por quase todos os jogadores que se pusessem à sua frente. Diz Nelson Rodrigues que Garrincha não driblava apenas seus adversários, mas, inclusive, o Botafogo, já que a torcida, quando se dirigia para o estádio, não era para ver o Botafogo, mas o craque jogar. “Mário Filho observou e, com razão”, escreve Nelson Rodrigues, “que, diante do Garrincha, ninguém era torcedor de A ou B. O público passava a ver e a sentir apenas a jogada mágica. Ele era, digamos assim, um deleite puramente estético da torcida.” Mas não era só isso. João Saldanha, que foi técnico do Botafogo durante algum tempo, e que conheceu Garrincha de perto escreveu, num de seus livros, que o atleta de Magé não driblava só o time no qual jogava. Driblava também a torcida e os técnicos. Dentre as vezes em que ele, João Saldanha, foi driblado, conta que, numa partida de futebol entre o alvinegro e um time de Londrina, Garrincha, em menos de vinte e quatro horas, conseguiu sair da concentração e, nesse período, namorar uma mulher que tempos depois procurou o João Saldanha com um menino nos braços.
A relação de Garrincha com as mulheres, aliás, era tão
ou mais intensa do que aquela que mantinha com a bola. Conta João Saldanha,
noutra crônica, que quando o Botafogo foi jogar em Goiânia, ele pediu para o
dono do hotel dispensar duas camareiras porque, como eram “muito bonitinhas”,
justificou o técnico do Botafogo, podiam causar problemas à equipe. O dono do
hotel, compreensivo, fez o que João Saldanha pediu: dispensou as duas. A
roupeira, no entanto, como tinha mais de cinquenta anos e não parecia nem um
pouco atraente, ficou. Garrincha, quando soube disso, ao que parece, correu
atrás dela e, em menos tempo do que era de se imaginar, deitou com ela.
E não para por aí. Nelson Rodrigues, de quem nos
serviremos muitas vezes neste e em outros trabalhos, escreve que quando o
Flamengo foi fundado, em priscas eras, as mulheres “usavam umas ancas imensas e
intransportáveis”, a ponto de ser “impossível não ter uma funda nostalgia dos
quadris anteriores à I Grande Guerra”, quando “uma menina de catorze anos, para
atravessar uma porta, tinha que se pôr de perfil”.
Garrincha, diga-se de passagem, talvez tivesse essa nostalgia de Nelson Rodrigues pelas mulheres que usavam essas “ancas imensas e intransportáveis” e, talvez por isso, quando via alguma na sua frente, imaginava que para passar por ela fosse necessário, primeiro, penetrá-la fisicamente. Como toda partida de futebol requer que o jogador, para levar a bola de um campo para outro, passe, primeiro, por seu marcador, é bem possível que o homem de Magé, ponta-direita do Botafogo, quando tocava numa bola e via alguém à sua frente, fizesse a mesma coisa: passasse a bola por entre as pernas do adversário. A bunda das mulheres com as quais se relacionava nessa época, portanto, era a inspiração que Garrincha tinha para, no momento em que tocava a bola, driblar os outros jogadores e aparecer com ela do outro lado.
Mas isso ainda diz pouco! Afinal, não é por acaso que
na gíria do futebol se falava, antigamente, que quando Pelé e Garrincha pegavam
a bola e faziam uma boa jogada, isso não era vantagem nenhuma porque os
ancestrais “desses dois crioulos”, afirmava a gíria, “para sair de casa e
buscar água na África tinham, primeiro, que driblar um ou dois leões para, em
seguida, chegar em casa sãos e salvos”.
Garrincha! Este nome que, dentre outros, designa um
pássaro que, por sua vez, não se chama “garrincha”, mas “garricha”, fez tanto
pelo futebol brasileiro que o Brasil talvez não fosse tricampeão do Mundo em
1970, se ele não tivesse ido para a copa de 1958 na Suécia e, lá, enquanto os
russos riam de suas pernas tortas, simplesmente não souberam o que dizer quando
a partida começou e o craque de Pau Grande praticamente humilhou o time
soviético com menos de cinco minutos de jogo. Por isso, Nelson Rodrigues, numa
de suas crônicas mais apaixonadas sobre futebol, afirma o seguinte: “Feliz do
povo que pode esfregar um Garrincha na cara do Mundo”!
A bunda da mulher brasileira, meus amigos, é como a
bola nos pés de Garrincha quando, driblando seus adversários, fazia com que
tanto os russos quanto os alemães caíssem ao chão à medida em que a bola ia
passando. Com a mulher brasileira ocorre a mesma coisa. Basta passar por um de
nós homens para, imediatamente, olharmos para trás, tal como os adversários de
Garrincha quando caíam ao chão, vencidos, e não tinham ânimo, sequer, para se
levantar.
Fonte: tuliomonteiroblog.wordpress.com
2 comentários:
Texto muito bom. Duas coisas que me chamaram a atenção, a primeira é o Garrincha ser admirado por todas as torcidas, e isso é verdade, ninguém nunca conseguiu odia-lo por fazer o que fazia, os torcedores admiravam e se divertiam com seu futebol.
Em segundo lugar coincidiu com algo que comentei outro dia sobre o Botafogo num blog que dizia "respeitem o Botafogo". Escrevi mais ou menos oo seguinte: respeitem o Botafogo, pois foi graças a um gênio que vestia a sua camisa que a seleção brasileira e o Brasil perderam o complexo de vira latas e, se não fosse aquele conquista inicial em 58, dificilmente chegaríamos ao número de títulos que chegamos. Não é por estarmos numa situação de falta de títulos que se apaga a gloriosa história do Botafogo de Futebol e Regatas, um dos clubes mais importantes do planeta, o clube que impôs o respeito ao futebol brasileiro. ABS e SB!
Garrincha tinha a cara d Botafogo. Claro queseria muito bom termos tidotambém Pelé, mas Pelé não tinha a cara do Botafogo. O improviso, o inesperado e a criatividade são marcas do Botafogo e de Garrincha. Por isso conquistaram o mundo. O prestígio - de que fala Luís Castro - mostra que nem tudo se resume ao resultadismo, é preciso ter charme e arte. E isso tivemos sempre até início da década de 1970, mesmo quando tivemos séries temporais desastrosas em matéria de títulos (1912-1930; 1935-1948; 1948-1957).
Abraços Gloriosos.
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