João Saldanha, o “João sem medo”... João Saldanha,
homem de fortes convicções qualquer que fosse o tema. Quando o assunto era
futebol ou política, João tornava-se imbatível nas discussões. Homem de
respostas rápidas e grandes “sacadas”, apresentava conhecimento em áreas
diversas, o que levou muito de seus amigos a desconfiarem sobre a realidade ou
não dos fatos.
Um dos maiores nomes do jornalismo
esportivo brasileiro, João não poderia ser tratado como um simples jornalista,
era também um escritor de mão cheia, bastando para isso ver os textos que
publicou durante quase toda a vida em diversos jornais e revistas em forma de
crônicas ou colunas. Sem contar, o trabalho como comentarista no rádio e TV e
ainda o verdadeiro clássico da literatura esportiva “Os subterrâneos do
futebol”, escrito por João.
Após a sua morte durante a cobertura de mais uma Copa
do Mundo, em 1990, João virou tema de diversas obras. Jornalista e técnico. O
homem e a vida agitada se misturavam. A paixão pelo Botafogo, seu clube de
coração, interminável.
Uma das obras de referência sobre o
trabalho de João Saldanha na crônica esportiva recebeu o título de um de seus
bordões preferidos, “Vida que segue” (Editora Nova Fronteira, 2006), coletânea
de crônicas organizadas por Raul Milliet.
Desta obra, Literatura na Arquibancada destaca um dos
textos de apresentação feito pelo também jornalista Sérgio Cabral (os outros
dois são assinados por Óscar Niemeyer e Tostão).
O SABE-TUDO
por Sérgio Cabral
“João Saldanha me impressionava
porque, além de saber de tudo, era exatamente o que se espera de um sujeito
espirituoso, como demonstrou, por exemplo, naquele dia (não me canso de lembrar
desta tirada) em que, após um jogo Brasil x Iugoslávia, em que Zico teve a sua
melhor atuação na seleção brasileira, o narrador Waldir Amaral só lhe deu 30
segundos para os comentários. Mas ele não precisava de tanto tempo: “O Brasil
venceu porque Zico se chama Zico. Se o nome dele fosse Zicovic, a Iugoslávia
seria a vencedora”.
Era muito pessoal na interpretação dos fatos. Vendo-me
protestar, desde a década de 1980, todos os anos, contra a aceleração do ritmo
dos sambas-enredo, o que os transformou em autênticas marchinhas carnavalescas,
deu-me uma explicação que só ele poderia dar: “O samba passou a correr depois
que o desfile passou a ser feito na rua Marquês de Sapucaí. Como os
compositores citam muito o nome da rua nas letras, os sambas viram marchas,
porque Sapucaí é uma palavra que conduz à marcha, porque é oxítona. Para o
samba voltar a ser samba de verdade, o desfile tem de ser feito na avenida
Presidente Vargas ou até mesmo na rua Almirante Cochrane”.
Outra vez, numa palestra para
estudantes universitários, uma aluna quis saber dele o que achava do futebol
feminino. Pensou muito, indicando que se tratava de uma questão embaraçosa pelo
menos para ele. Mas resolveu responder: “Sou contra”. As moças manifestaram
surpresa e decepção. João Saldanha, um cara sem preconceitos, como poderia ser
contrário ao futebol feminino? Mas ele explicou: “O sujeito tem um filho, que
leva a namorada para conhecê-lo. O pai faz a pergunta clássica: ‘Você trabalha
ou estuda?’ ‘Trabalho’, ela responde. ‘Em quê?’, quer saber o velho. ‘Sou
zagueira do Bangu’”. Conclui Saldanha: “Pega mal, vocês não acham?”.
Em 1968, quando a União Soviética invadiu a
Tchecoslováquia, os intelectuais comunistas não gostaram, mas queriam uma
explicação. Discutiam o tema nas mesas do Degrau, cada qual encontrando as
razões mais complicadas expostas com aquela linguagem sofisticada dos
conhecedores do materialismo dialético, quando chegou João Saldanha, que foi
imediatamente abordado:
– O que levou a União Soviética a fazer uma coisa
dessas, João? – perguntou um dos intelectuais.
João não pensou muito:
– Depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa Central é
a Zona do Agrião. Quando a bola divide por ali, a União Soviética entra de
sola.
E os intelectuais comunistas (pelo
menos, aparentemente) ficaram satisfeitos com a explicação.
Tinha uma certa fama de mentiroso porque sabia de
tudo. E sabia mesmo. Viajávamos na ponte aérea para São Paulo e, na altura da
cidade de Parati, o avião começou a sacolejar muito. Explicou-me que, naquela
região, o vento que vinha não me lembro de onde se juntava a um outro saído também
não me lembro de onde, causando a tormenta que os pilotos de avião conheciam
muito bem. Tempos depois, um piloto de avião me disse que realmente tal
fenômeno ocorre muito por ali.
Mas quem não acreditava nele dançava, como naquela
madrugada em que a seleção brasileira chegou a um hotel distante do centro de
Belgrado e os jornalistas morriam de fome, mas o restaurante do hotel estava
fechado. “Só há um lugar onde vocês podem encontrar comida. Peguem esta rua em
frente e, depois de atravessar a ponte, sigam pela direita e entrem na primeira
à esquerda.
Na segunda esquina, à esquerda, tem
uma casa em que terão de bater na janela até serem atendidos por uma velhinha.
Peçam desculpas a ela pela hora e digam que são brasileiros e estão com muita
fome. A velhinha, que entende português, fará com muito prazer um jantar que
vocês vão adorar”, foi a orientação do comentarista realmente técnico. Só a
metade dos jornalistas acreditou em João e, por isso, jantaram muito bem. Os
céticos dormiram com fome, mas, nos dias seguintes, tiveram de voltar à casa da
velhinha, sempre aberta para os brasileiros.
Eu gostava de conviver com João e ele sabia disso,
tanto que me fazia confidências como a alegria que ficou quando descobriu,
perdida na sua papelada, uma fotografia do tempo em que jogou no Botafogo (se
não me engano, nos juvenis). Finalmente, um documento provando o que sempre
dizia, ou seja, que jogou no seu querido Botafogo, coisa que muitos colegas não
acreditavam. Mas a alegria diminuiu quando descobriu que a foto mostrava também
o placar da partida: Vasco 3 x 2 Botafogo. Pegou uma gilete e raspou o placar,
como me confessou na dedicatória de um livro dele.
Dias antes da Copa do Mundo de 1990,
estava na fila dos passageiros que iriam pegar o avião para a Itália, quando
ele chegou conduzido por uma cadeira de rodas. Seu estado de saúde precário não
recomendava uma viagem, mas pior seria se fosse obrigado a permanecer no
Brasil. Quem também estava na fila era o jornalista Sebastião Neri, que havia
surpreendido todos os amigos nas eleições de 1989 ao apoiar a candidatura de
Fernando Collor.
– Tudo bem, João? – quis saber Neri.
– Tudo bem. Estou sentado nesta cadeira só de
sacanagem – foi a resposta de um sujeito indignado com a troca de lado do
colega.
Com meia hora de viagem, João teve uma das suas
apavorantes crises respiratórias e o comandante quis até aterrissar em Recife,
mas ele protestou e, de fato, pouco depois estava recuperado. Recebia notícias
dele, durante a Copa, passadas pelos colegas da TV Manchete. Terminada a Copa,
fui até Viena em viagem de turismo e, na volta, peguei o avião para o Rio de
Janeiro. A bordo, o corpo de João Saldanha.
Foi a viagem mais triste da minha vida.”
Apesar dos vários livros com
coletâneas de seus textos, João Saldanha não tinha até pouco tempo uma merecida
biografia. Em 2007, André Iki Siqueira nos brindou com um livro espetacular
sobre a vida do mais polêmico jornalista esportivo do país: “João Saldanha, uma
vida em jogo” (Companhia Editora Nacional). Tão bom que acabou virando filme,
“João” (documentário em longa-metragem), também pelas mãos de Iki, co-diretor
da obra.
Como afirma Iki Siqueira, João era “o comentarista que o Brasil inteiro consagrou. Um
revolucionário em todos os sentidos”. A obra de Iki Siqueira é muito
mais do que uma biografia, mas um “romance de aventura, uma história de tirar o
fôlego, em que fato e ficção se confundem para criar um personagem
inesquecível, o João Sem Medo - um grande brasileiro”.
Sinopse do livro
"João Saldanha - uma vida em jogo", de André Iki Siqueira, é a
biografia do mais consagrado jornalista esportivo do país. Você vai
surpreender-se com a história do menino que brincava carregando revólver de
verdade na cintura e peleava imitando o pai na luta entre maragatos e
chimangos, no Rio Grande do Sul; do militante comunista que enfrentou a polícia
de peito aberto e ganhou uma bala que lhe perfurou o pulmão e que ajudou a
organizar a guerrilha camponesa de Porecatu, no Paraná; do técnico que virou
unanimidade nacional ao levar uma seleção desacreditada a classificar-se para a
Copa de 1970 e de sua controversa demissão pouco antes daquele Mundial.
Como num romance de aventura, é uma história de tirar
o fôlego, em que fato e ficção se confundem para criar um personagem
inesquecível, o João Sem Medo - um grande brasileiro”.
Sobre André Iki Siqueira
Carioca, jornalista, vascaíno, autor
do livro "João Saldanha, uma vida em jogo" e co-diretor do
documentário "João", longa-metragem sobre a vida de João Saldanha.
Viciado em futebol. Consultor de comunicação e marketing; roteirista e diretor
de tv e cinema. Músico e compositor.
Literatura na Arquibancada recomenda ainda a leitura
da entrevista feita por Geneton Moraes com João Saldanha.
Há ainda o programa Roda Viva, da TV Cultura, onde
João revela muitas das polêmicas que se envolveu.
2 comentários:
Rui,
Gostaria de ver o João Sem Medo Saldanha frente a frente com o NÓDOA por apenas cinco minutos!
Abs e Sds, Botafoguenses!!!
1 minuto, Gil. Como o João Saldanha não teria nada a dizer ao dito cujo 1 minuto chegava para sacar a pistola e pô-lo a saltar o muro de General Severiano. Talvez conseguisse ser mais rápido que o Manga, quem sabe?...
Abs. Gloriosos.
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