[Paulo Marcelo Sampaio é o autor destas crônicas,
interpretando os protagonistas pelos quais assina; as crônicas publicadas no
Mundo Botafogo são uma gentileza do autor.]
por
HELENO DE FREITAS
25.11.2014
Não sou santo. Nunca fui.
Acordei sobressaltado. Porque ouvi na madrugada preces vindas da Terra. Muitas
delas rogavam pelo meu nome, pela minha presença. Pediam auxílio. Murmúrios,
gritos de desespero, sopros de voz. Estranhei. Nunca fui dado a igrejas, repito.
Nem as que rezavam pela cartilha de Pedro, o fundador. Nem tampouco pelas
panelinhas tão comuns no futebol, tanto dentro de campo como fora dele. Na
minha velha São João Nepomuceno, enquanto meu pai tratava de vigiar o
escoamento das sacas de café, eu – muito jovenzinho – era endemoniado. A cada
jogada errada no campo do Mangueira, naquela colina, diziam que eu estava com o
“diabo no corpo”. Qual o quê! Nada disso. Eu não gostava era de gente burra. E
ralhava com todos. Porque não admitia perder. Porque não suportava os
acomodados. Os covardes, eu fingia não vê-los quando cruzava com eles no ‘Dia e
Noite’. Foi nesse bar que disse para quem quisesse ouvir que, comigo em campo,
teríamos sido campeões em 1950.
Aqueles pedidos de socorro me
agoniavam. Mais me entristeciam do que agoniavam. Lembrei de uma frase que
disse em delírio a meu irmão Heraldo, no sanatório de Barbacena. “Qualquer dia
pego meu Chevrolet e vou ao Rio ajudar meu Botafogo”. Agora, mais do que nunca,
ele precisava de mim. Era dia de jogo. Contra o figueirense (desculpam,
maiúsculas só para o Botafogo!). Quando cheguei ao estádio de São Januário,
antes mesmo de entrar, estranhei tudo. Aquela não era a cidade que aprendi a
amar. Embora frequentasse a Zona Sul, sempre fui bom observador. Tudo
degradado, sujo, sem o glamour dos anos 40, sem o charme que as pequenas viam
em mim. Reclamei do trânsito. E olha que o taxista cortara caminho. De belo
mesmo, só um prédio em onda, o Conjunto Pedregulho, em Benfica. O motorista
notou meu olhar interessado. Achei que você só gostasse do estilo rococó e dos
rabos-de-peixe dos carros americanos, Heleno. Ele me reconhecera. Tenente
reservista que chegou a acompanhar João Figueiredo, já general de pijamas – os
dois a cavalo – pela orla carioca, me disse tratar-se de uma obra de Affonso
Reidy, um dos modernistas da época. Teu clube tá mal, Heleno de Freitas. O
chofer era espírita. Acreditava em fantasmas. Estranhei tanta cultura. Ele me
explicou que, depois que largou o futebol – chegara a jogar nos juvenis do
flamengo na turma de Adílio, Tita e Rondinelli – teve que estudar muito pra
entrar pro Exército. Boa sorte, senhor Gilda, se despediu. Pensei em brigar.
Mas fantasmas não brigam.
Atrasado, entrei esbaforido.
Isso era hora de pegar engarramento, o Botafogo precisando tanto de mim? Assim
que cheguei, sorri. Por ironia, as primeiras imagens que chegaram à minha
retina eram de uma bandeira tremulando. Nela meu rosto pintado e a frase Heleno
Vive! Tive vontade de chorar. Mas logo me veio a raiva. Lembrei que debaixo
daquelas arquibancadas eu tivera uma das mais ásperas discussões no futebol.
Travamos ali, Flávio Costa e eu, uma luta digna dos boxeurs Rocky Marciano e
Lee Savold, os bambambans da época.
Chega! Vamos ao jogo. Lá de
cima – ao contrário do que muitos acham – não prevemos o futuro. Apenas, em
alguns casos, pressentimos que algo de ruim pode estar a caminho. Isso nos dá,
aqui embaixo, a aura de videntes. Não seria difícil ganhar alguns níqueis se
resolvesse apostar na derrocada no meu Botafogo. Mas nunca faria isso. Em vez
das moedas, preferi a torcida. E fui torcer. Como sempre fiz. Dentro ou fora de
campo. Não adiantou. O camisa 10 chutou o chão na hora da cobrança de pênalti.
O vizinho do lado, 11 anos, muito jovem pra me reconhecer, disse que ele era um
bad boy. Assim como Heleno, sabe moço? Eu afaguei sua cabeça. E quieto fiquei
até o final do jogo.
Fui a Copacabana. Estava
desejoso de um galeto no Sat’s, ali perto da Prado Júnior. No balcão perto da
rua, dois jovens discutiam sobre o domínio mineiro no futebol. Lembrei do Zé
Maria, que dia desses puxara conversa comigo. Chegou tímido, meio encabulado.
Naquele dia eu estava pra poucos amigos. Mas logo Zé foi se soltando. “Tenho um
filho lá embaixo, o Gil, que é meio parecido contigo, Heleno. Meio
‘caga-raiva’, invocado, sem papas na língua. A diferença é que vocês eram
temperamentais, mas resolviam. Sabe por que Minas tá dominando? Porque cruzeiro
e atlético são clubes também sociais. Há a pressão dos sócios que frequentam a
sede. E que são apaixonados por futebol. Isso é tudo, Heleno”. Acabei meu chope
e atravessei o túnel. De longe avistei a enorme bandeira. Ao me aproximar, fui
ficando triste. Nosso velho estádio dera espaço para um clube. Em cima de uma
laje. De uma única laje. De belo mesmo só o casarão. Jorginho, um crioulinho
mirrado que vigia o Manequinho, notou meu olhar vago. Terá me confundindo com
algum paciente do Pinel, logo ali em frente? Tá precisando de alguma coisa, meu
senhor? Acho que você não pode me ajudar, respondi, desconsolado. Jorginho não
sabia que eu queria voltar no tempo e ver de novo aquelas torres, aquelas
arquibancadas construídas com nosso suor, com o dinheiro dos apaixonados.
Aquela varanda lotada de botafoguenses abnegados como o doutor Bebiano, o
doutor Azeredo, o doutor Darcy.
Seu Carlito, Saldanha e o
Neném Prancha sempre nos mantém informados quando o assunto é General
Severiano. Dizem que nenhum dos candidatos – e olha que são quatro! – sonham em
ter um estádio de novo em Botafogo. Os tempos são outros, irão logo me
criticar. Somos um clube endividado, dirão outros. Não há mais lugar para
romantismos, pros namoros dentro dos Buicks conversíveis expostas à maresia de
São Conrado, repetirão os pragmáticos. Falou-se muito do patrimônio do clube:
Sacopã, Mourisco Mar, Caio Martins, Marechal Hermes, Caio Martins. Nenhum
deles, pasmem amigos! – nenhum deles falou da volta ao nosso berço. Mesmo
depois da derrota de domingo, pensava em ficar para acompanhar as eleições.
Desisti. Subo triste, mas com uma pontinha de esperança. Quem lutará por nosso
estádio no lugar onde ele nunca deveria ter saído?
Sempre amando o Botafogo, com
todo o carinho do
Heleno de Freitas
Fonte: http://arquibabotafogo.com
2 comentários:
Rui,
Feliz pelo retorno do Arquiba e as crônicas do PMS!
Abs e Sds, Botafoguenses!!!
Felizmente o PMS continua publicando estas belezas de linhas. Por isso tem direito a uma rubrica especial no MB.
Abs. Gloriosos.
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