segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Garrincha, claro!

[Nota do editor do Mundo Botafogo: Paulo Mendes Campos, filho do médico e escritor Mário Mendes Campos e de Maria José de Lima Campos, nasceu há 89 anos, a 28 de fevereiro de 1922, em Belo Horizonte, e faleceu a 1 de Julho de 1991, exatamente no dia em que o Club de Regatas Botafogo fora fundado há 97 anos atrás. Paulo Mendes Campos tornou-se escritor e um destacado botafoguense, preenchendo uma parte da sua vida literária com escritos sobre o Glorioso. Tendo chegado ao Rio de Janeiro em 1945 no intuito de conhecer Pablo Neruda, ficou até ao dia da sua partida aos 69 anos de idade.]

por Paulo Mendes Campos

"Quando ele avança, tudo vale. A ética do futebol não vigora para Mané. O fair-play exigido pelos britânicos é posto à margem pelos marcadores, pelos juízes, pelas torcidas. Regras do association abrem estranhas exceções para ele. Uma conivência complacente se estabelece de imediato entre o árbitro e o marcador, o primeiro compreendendo o segundo, fechando os olhos às sarrafadas mais duras, aos carrinhos perigosos, aos trancos violentos, às obstruções mais evidentes. Quando esses recursos falecem, o marcador em desespero, sem medo ao ridículo, agarra a camisa de Garrincha. Aí o juiz apita a falta, mas sem advertir o faltoso: o recurso é limpo quando se trata de Garrincha.

Todos os jogadores do mundo - ensina o professor Nilton Santos - são marcáveis, menos seu Mané. Mané em dia de Mané só com revólver. Nilton é o mais consciente dos fãs de Garrincha, costumando dizer que, se ainda jogou futebol depois dos trinta anos, foi por ser do mesmo time de seu Mané.

Uma tarde apareceu para treinar um menino de pernas tortas. Já no vestiário o técnico Gentil Cardoso, rindo-se, chamara a atenção de todos para o candidato: aquele sujeito poderia ser tudo na vida, menos jogador de futebol. Começado o treino, lá pelas tantas uma bola sobrou para Garrincha. Nilton proferiu o grito de costume, mas o menino torto matou a bola com facilidade e ficou esperando. Ferido pela ousadia, Nilton partiu para cima do garoto com decisão. (Já joguei contra ele: é uma extração rápida e sem dor). Talvez naquele momento estivesse em jogo, não só a bola, mas o destino de Garrincha. Se Nilton o desarmasse e lhe aplicasse como corretivo à petulância duas ou três fintas, Gentil Cardoso não esperaria muito para enviar o novato sem jeito para o chuveiro. Apesar desse perigo, e a despeito de estar enfrentando um jogador da mais alta categoria, Mané escolheu o caminho da porta estreita: driblar Nilton Santos. Talvez pensasse: ou dou uma finta neste cobra ou volto para o trabalho mal-pago da fábrica.

Só três vezes em sua carreira Nilton levou drible entre as pernas: a primeira foi ali naquele instante.

A alegria do futebol de Garrincha está nisso: dentro do campo, ele se integra no espaço que lhe é próprio, não reflete mais, não perde tempo com a vagareza do raciocínio, não sofre a tentação dos desvios existentes no caminho da inteligência. Como um poeta tocado por um anjo, como um compositor seguindo a melodia que lhe cai do céu, como um bailarino atrelado ao ritmo, Garrincha joga futebol por pura inspiração, por magia, sem sofrimento, sem reservas, sem planos. O futebol requintadamente intelectual de Didi é sofrido e sujeito a todas as falhas do intelecto. Garrincha, pelo contrário, se suas condições físicas estão perfeitas, se nada lhe pesa na alma, é como se fosse um boneco a que se desse corda: não reflete mais. Garrincha é como Rimbaud: gênio em estado nascente. Se um técnico desprovido de sensibilidade decide funcionar como cérebro de Garrincha, tentando ser a consciência que lhe falta, isto é, transmitindo-lhe instruções concretas, lógicas, coercitivas, pronto - é o fim. O grande mago perde a espontaneidade, o espaço, o instinto, a força. Em vez do milagre, que ele sabe fazer, ensinam-lhe a fazer um truque sensato. Não pode haver maior tolice.

João Saldanha sabia que não há instrução possível para Garrincha. Se a virtude do Mané nada tem a ver com a lógica, não será através da lógica que lhe corrigiremos os possíveis defeitos. E defeitos e virtudes não são partes que se possam isolar em Garrincha, que escreve certo por linhas tortas. Suas pernas são símbolos desconexos dessa ilogicidade criadora.

O jornalista Armando Nogueira tem uma teoria muito boa sobre o drible de seu Mané, apesar de Mário Filho não concordar com ele e comigo. O drible, diz Armandinho, é, em essência, fingir que se vai fazer uma coisa e fazer outra; fingir por exemplo que se vai sair pela esquerda, e sair pela direita. Pois o Garrincha, conclui o comentarista, é a negação do drible. Ele pega a bola e pára; o marcador sabe que ele vai sair pela direita; seu Mané mostra com o corpo que vai sair pela direita; quando finge que vai sair pela esquerda, ninguém acredita: ele vai sair pela direita; o público todo sabe que ele vai sair para a direita; seu Mané mostra mais uma vez que vai sair pela direita; a essa altura, a convicção do marcador é granítica: ele vai sair pela direita; Garrincha parte e sai pela direita. Um murmúrio de espanto percorre o estádio: o esperado aconteceu, o antônimo do drible aconteceu.

Descobri há tempos uma graça espantosa nessa finta de Garrincha: às vezes o adversário retarda o mais possível a entrada em cima dele, na improvável esperança duma oportunidade melhor. Garrincha avança um pouco, o adversário recua. Que faz então? Tenta o marcador, oferecendo-lhe um pouco da bola, adiantando esta a um ponto suficiente para encher de cobiça o pobre João. João parte para a bola de acordo com o princípio de Nenem Prancha: como quem parte para um prato de comida. Seu Mané então sai pela direita."

4 comentários:

Júlio disse...

Paulo Mendes Campos foi um grande escritor. Fernando Sabino também era botafoguense.

Parecia que Mané flertava com o improvável, e como diz na última parte do texto, alguns adversários davam terreno pra ele.
Acho que se fosse nos dias de hoje, ele levando a vida que levava a carreira dele teria durado muito, mas muito pouco.

Ruy Moura disse...

Mané era, ele mesmo, o improvável.

Abraços Gloriosos!

Jomar Pereira disse...

Garrincha não tem explicação. Já li, reli, vi, revi. Garrincha não era craque. Ele não tem explicação. Não era gênio. Ele não tem explicação.

Ruy Moura disse...

Mané era, então, também, o inexplicável!(rsrsrs)
Abraços Gloriosos, Jomar.

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