por
Paulo Marcelo Sampaio
Jornalista,
Botafoguense
Blog
Arquiba Botafogo
27
de Agosto de 2013
Terça-feira, 27
de agosto de 2013. Na varanda do Palácio Colonial da avenida Vesceslau Brás,
Garrincha está esparramado numa cadeira de vime. Ele olha para o nada. De
repente começa a prestar a atenção para um prédio rosa, do outro lado da rua. É
lá que funciona o Instituto de Neurologia Deolindo Couto. Um pouco mais adiante
está o Instituto Philippe Pinel, batizado em homenagem ao médico francês
considerado o pai da Psiquiatria. Foi ele o primeiro a defender que doentes
mentais fossem tratados como doentes, com todo o cuidado; não com violência.
Garrincha não sabia de nada disso. Nem quem era Pinel. Achava que Pinel era o
mesmo que “maluquinho”, palavras dele. Colocou as mãos nos bolsos da bermuda de
brim, curta e apertada. E sorriu. “Está se lembrando do Manja Balão?”,
pergunto. Garrincha coça a cabeça. “Como assim? Como você sabe dessa
história?”, quer saber.
Explico que
Gerson, enteado dele, tinha acabado de lançar um livro. “De pernas pro ar”
conta histórias de Garrincha, a maioria depois que deixou de jogar. “Legal!
Esse moleque sempre foi esperto. Me enchia de perguntas. Chegava a ser
enjoado”, lembra o Anjo das Pernas Tortas. Manja Balão, mulato pobre, vivia
perambulando pelas ruas de Jacarepaguá, no tempo em que Mané morava por lá com
Elza Soares. A empregada tinha horror ao garoto. Garrincha, que sabia disso,
esperava a cozinheira sair para as compras. Numa dessas vezes, deu sinal verde
para o moleque. Tinha panela no fogo. Ele se fartou. “Tava bonzão, seu Mané!”,
agradeceu Manja Balão, limpando o resto de comida que caía da boca com as
costas da mão. Minutos depois, Garrincha ouve um berro e uma pergunta da
empregada. “Quem comeu o fubá que preparei pros cachorros?” Mané sorriu com sua
traquinagem.
Ele fecha o
baú. Tem que curtir o agora. E se levanta. Na calçada, repara que há um escudo
do Botafogo no chão. Ele, que não é de se aborrecer, se aborrece. “Isso não é
pra ser pisado”, pensa em voz alta. Tira rapidamente os pés do escudo e pára de
novo. E começa a assobiar, como se estivesse procurando por um passarinho. Pergunto
se gosta de música. Sem tirar o olho do céu, balança a mão, como se quisesse
falar “mais ou menos”. Agora desvia o olhar para a direita. Estranha a torre do
Rio Sul, mas reconhece o Canecão. O baú está aberto de novo. “Quando morávamos
na Lagoa, a crioula sempre me trazia aqui”, lembra. “Cheguei a ver o Chico
Buarque e a Bethânia juntos”. Ele se referia a um show de 1974 que, de tão bom,
virou LP. “Você sabia que o Chico foi meu motorista em Roma? Ele me acompanhava
nas peladas por lá”, fala, com um quê de saudade. “Nas viagens eu cantava
Sabiá. Sou meio desafinado, sabe, gente boa? Mas ele não reclamava porque
costumava deixá-lo sempre na cara do gol. Era um acordo de cumpadres”.
Por causa de
“Sabiá”, Garrincha lembra agora de outro compositor: Tom Jobim. “Você sabia que
ele é primo distante de João Saldanha?”, pergunto. “É mesmo? Tinha que ser.
Dois artistas. Um, da música e outro, da amizade. Apesar de brabo, ele entendia
a gente”, fala. “E como escrevia bem! Ele foi quem melhor escreveu sobre o que
eu aprontava em campo”. Quero saber agora o que acha sobre sua biografia,
escrita por Ruy Castro. “Não sou de ler não, sabe gente boa? Dia desses o
doutor Guilherme Arinos me emprestou. Lá se fala de meus ancestrais. Até do
tamanho do meu pau! Que cara indiscreto! Mas o que me chateou foi ele ter
falado que fui torcedor do flamengo. Posso até ter sido. Mas a coisa que tinha
mais prazer era ganhar deles. Sacaneava até antes de enfrentá-los”, revela.
Lembro que na
véspera da decisão do Campeonato Carioca de 1962, Garrincha foi a Pau Grande.
Encontrou no bar dois de seus maiores amigos, Suingue e Emídio. “Vou ganhar de
vocês”, provocou Mané, “e com três gols meus. Aposto dois engradados de
cerveja”. “Tá-tá-tá aaaaapostado”, devolveu o gago Suingue. No dia seguinte,
estavam no Maracanã. Eles não se renderam à fama do amigo e torciam
fervorosamente pelo rubro-negro, contra o amigo inseparável. De nada adiantou.
Botafogo campeão, 3 a 0, três gols de Garrincha. Cabeças inchadas, voltaram de
trem para Pau Grande. E se surpreenderam com o que viram. Garrincha tinha
dispensado a comemoração com os colegas campeões numa churrascaria do Rio.
Pegou o carro e foi pra casa. Quando viu os amigos, disparou: “Não falei que ia
dar Botafogo? Já estou bebendo por conta de vocês, seus otários”. E abriu um
sorriso maroto. Garrincha sorri com minha lembrança.
Antes que ele
seja reconhecido, emendo outro assunto. Numa coleção de jornais de Gérson
Sabino, comprado a dois dinheiros na feira da Praça XV, leio que Garrincha –
enquanto a seleção de Saldanha se prepara para a Copa de 70 – sonha ser técnico
do Corinthians. “Onde tava com a cabeça? Não dou conta nem de mim, vou dar
conta dos outros?” Pergunto se ele não poderia dar boas instruções aos pontas
que ele viria a treinar. “Gente boa, não dou pra isso. Não sei explicar”. E
muda de conversa. “Quando eu tava em campo, era um pensamento na bola e outro
no mato lá de Pau Grande”. “Isso não te desconcentrava?” “Claro que não! Ficava
pensando nos melros, nas cambaxirras, na rapidez deles. E partia pra cima dos
caras”. Logo é reconhecido por um, dois, três, quatro torcedores. Luizinho
Quintanilha, meio-campo campeão em 1989, chega ao portão. Espanta-se por ser
reconhecido pelo velho ídolo. “Ei, garoto, como vai seu pai?”, quer saber Garrincha.
Seu Quintanilha costumava levar o ponta aos treinos de táxi. Do nada uma
multidão se forma. De repente está nos ombros de Rafael Kastrup, da Loucos pelo
Botafogo. Todos querem abraçá-lo, tocá-lo, agradecer por tantas risadas, por tantos
dribles, por tantos gols.
Garrincha agora
vê os vidros da loja manchados com tinta branca. “Já é decoração de Natal?”
Luizinho, que o acompanha, diz em voz baixa. “A torcida está revoltada porque
venderam o Vitinho, um atacante abusado. Foi prum time de Moscou”. Garrincha dá
de ombros. “Não trocaria minha terra por nada. Onde ia ver meus passarinhos? Em
que lago ia mergulhar minha pinga? A garrafa ia quebrar com tanto frio”. Ele
pede licença para entrar na loja. Rafael o tira dos ombros. Numa das paredes,
uma camisa que fora usada por ele nos anos 60 está exposta. Dizem que está à
venda por 80 mil reais. “Não sabia que eu valia tanto, trinta anos depois da
minha morte”. Pede licença a todos e se encaminha para uma das cabines da loja.
E some por lá.
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