terça-feira, 17 de setembro de 2013

Heleno dormiu em paz

por Paulo Marcelo Sampaio
jornalista, botafoguense
Blog Arquiba Botafogo
29 / Agosto / 2013

Quando o juiz apitou o começo do segundo tempo – nunca gostei dessa raça! – não resisti. Fui matar o tempo na padaria. Pedi uma sopa de legumes. A TV – que aparelho estranho esse! – estava ligada no Jornal Nacional. Nem desconfiava o que se passava no Horto, onde o meu Botafogo jogava. Horto? Nunca tinha ouvido falar nesse lugar. Pra mim Horto era só aquele ali, a quinhentos passos de onde eu estava. Lembro-me dos anos 40. Era tempos de areais e lugares ermos. E era no Horto, a bordo do meu Packard conversível, que trazia minhas pequenas pra namorar. Depois o banho de cachoeira era certo. Quantas loucuras fiz por aqui, meu Deus! Será que se eu fosse de outro jeito, teria durado mais? Teria realizado meu segundo sonho? Porque o primeiro eu realizei. Nada me deu mais prazer do que vestir aquela camisa preta e branca. Mas eu queria tanto jogar a Copa de 50. Fui um jogador da Era Sem Copas. Chega dessa conversa. O que passou, passou.

A sopa esfriava. De propósito eu comia bem devagar. Assassinava o tempo. Paguei a conta e decidi vagar pelas ruas. Vi de rabo de olho o monitor que passava o jogo. Perdíamos. Por dois a um. Eu, que já dissera que o Botafogo não é lugar pra covardes, me senti culpado. É que nunca fui de ouvir nem ver jogos quando não estava neles. Lá em Barbacena, onde morri num sanatório, acompanhava os resultados só no dia seguinte. Resolvi tentar. Assim que sentei num pé-sujo, Dória, com a determinação típica dos centerforwards, empatou. O vizinho me alerta que o rapaz carequinha é beque. Estranhei. Como mudou esse futebol.

O jogo estava até controlado, mas senti palpitações. Como seria a sensação de morrer de novo? Não quis saber. Não quis arriscar. E voltei de onde tinha saído. Na entrada do céu, vi seu Carlito com um rosário nas mãos. Ô homem pra rezar, pensei. Com tantos diabos no meu corpo, nem um milhão de aves-marias nem outro milhão de pai-nossos me livrariam do inferno. Mas Deus é misericordioso e eu estou aqui. Nem todos por aqui são compreensivos. O goleiro Oswaldo Baliza vira o rosto quando cruza comigo. Entendo. Aqui todos sabem de tudo que se passou lá em baixo. Era eu fazer um gol, e ele tomar dois. Se eu tivesse feito dois, ele tratava de tomar três. Isso me deixava puto de raiva. Outros gostam de conversar, como o Garrincha, com quem nunca joguei, mas que fez questão de me visitar lá no sanatório. Quer saber das mulheres que conquistei. E emenda com suas aventuras amorosas. Estranho. Como pode um homem desconjuntado desses ter tido tantas pequenas?

As conversas surgem e vão embora. E nada do tempo passar. A dez metros de onde estamos, Otávio está debruçado numa prancheta. Óculos na ponta do nariz, lapiseira daquelas com grafite finíssima, o homem com quem fiz a melhor dupla de ataque de todos os tempos projeta um área de lazer que o prefeito daqui, o tal do São Pedro, nos prometeu. De repente, ele dá um pulo no banco e se esparrama no chão. Corremos, Garrincha e eu, para socorrê-lo. Mas ele já está de pé. Ergue o braço, cerra o punho e faz o V da vitória. Tira o fone do ouvido e avisa. “Malandro, acabou! Estamos classificados!”

Vou dormir em paz.

Heleno de Freitas 

Imagem: Tela de Augusto Herkenhoff

Fonte: http://arquibabotafogo.com/blog/?p=1684

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