quarta-feira, 17 de agosto de 2016

BFR HC: garotos bons de bola e barulhentos que mudaram o mundo (I Parte)

Túlio ‘Maravilha’ [Crédito: desconhecido] e Ray Cappo (Youth of today) [Crédito: BJ Papas] no meio do público

por DANILO R. PAIVA
escrito para o Mundo Botafogo

Tenho a plena convicção de que uma parte muito importante de quem eu sou se deve à música que escuto e ao clube que torço. Ambos, cada um de uma forma, ajudaram a moldar meu caráter e a forma como vejo o mundo. O clube, evidentemente, é o Botafogo de Futebol e Regatas. A música certamente é menos conhecida, uma espécie de ‘sub-sub-gênero’ musical: o hardcore, variação mais rápida, agressiva do punk rock. Isto pode até ser conversa de fã/torcedor que busca relações entre as coisas que gosta, mas existem claras semelhanças e analogias entre o Botafogo e o hardcore... a primeira delas sendo: garotos em idade escolar que, sem ter a menor idéia da importância futura do que estavam criando, mudaram o universo em que estão inseridos (futebol e música) e - por que não? - o mundo.

O Botafogo, em especial num blogue chamado ‘Mundo Botafogo’, dispensa apresentações. É um dos clubes mais importantes da história, é impossível pensar no que seria o futebol brasileiro sem o Glorioso. Por isso, seguirei falando mais do hardcore, para que as suas relações com o Botafogo possam ser entendidas. O hardcore é uma variação da música punk, e precisamos voltar um pouco além na linha do tempo do rock para entendermos minimamente como surgiu. Mike Andersen, em seu livro ‘Dance of Days: Duas décadas de Punk na capital dos EUA’ traça um quadro bastante interessante sobre o rock no fim dos anos 1960 e começo dos 1970:

"Muito da ideologia dos anos 1960, apesar de tudo, parecia contaminada pelo hedonismo e interesse pessoal. (...)

O rock também sentiu o baque. Em parte por conta da morte prematura de alguns de seus líderes criativos. Contudo, mesmo antes disso, já estava sendo encaminhado um divórcio gradativo do rock com a política radical da contracultura. Os interesses pessoais de um rock star dificilmente seriam aprimorados através da destruição do sistema que tornava possível seu alto padrão de vida. (...) Os simples frutos do sucesso, combinados com as exigências dos negócios, foram suficientes para conduzir os roqueiros rebeldes para o estabilishment. (...)

Conforme os sonhos dos anos 1960 perdiam força, o rock se tornava – mais uma vez – mero entretenimento. Algumas estrelas como Joplin, Hendrix e Morrisson viraram ícones, e foram poupados do embaraço da instabilidade criativa e da humilhação comercial por suas mortes. Contudo, artistas como os Rolling Stones, The Who e Dylan ostentavam um estilo de vida cheio de glamour, protegidos do mundo através de sua riqueza, mas sua música perdera vitalidade. Ao mesmo tempo, montanhas de dinheiro estavam sendo investidas em gravações, produções e marketing relacionados ao rock. Em meados dos anos 1970, o rock era altamente lucrativo, profissional e chato pra diabo!”

Pessoalmente, eu acrescentaria um ‘pretensioso’ ao lado do lucrativo, profissional e chato pra diabo. As músicas eram cada vez mais elaboradas, longas, cheias de solos. O rock star era extravagante, quase inalcançável. Os shows em palcos enormes, em arenas, com a banda completamente distante do público.

O surgimento do punk rock, pelos meados dos anos 1970, quebrou esse cenário. O rock voltava a ser simples, as músicas voltavam a ter 3 minutos, os membros das bandas eram ‘gente comum’ com quem a garotada podia se relacionar (são famosas as fotos dos Ramones indo para ensaios e espetáculos de metrô em NY carregando seus instrumentos). O rock voltava a ser barulhento, ‘perigoso’ e a incomodar.  Com bandas como The Clash, vieram letras mais contestadoras, e com os Ramones surgiram todas as bases musicais desse estilo. Mas, apesar de todo o oxigênio, de toda a fúria, a nova energia e estímulo que a música punk trouxe ao rock, é possível dizer que as bandas desse estilo nunca souberam, ou quiseram, transformar a indústria musical na qual estavam inseridas. O esquema ‘empresário/produtor/gravadora’ era a regra. Bandas como Stooges, MC5, NY Dolls e muitas outras deixaram de existir quando foram demitidas por gravadoras, devido a vendas abaixo do projetado. Os Ramones passaram praticamente toda a carreira tentando o reconhecimento de rock star, o sucesso comercial.

Os ‘garotos’: Minor Threat em 1981 [Crédito: Rebecca Hammel] e Botafogo FC de 1907 [Crédito: desconhecido]

Mas algo novo e fora dos padrões também incomodava, e o sensacionalismo explorou o punk até a última gota, criando um perfil ‘assustador’ para esse tipo de música, suas bandas e público. Se havia surgido como um furacão no meio dos anos 1970, antes do final da década, para a grande indústria o punk já estava morto, substituído pelo que foi batizado de new wave, sua versão domesticada, tanto na música quanto no visual e comportamento, com o tipo certo de ‘rebeldia’ estudada e que é aceita por pais, rádios, escolas.

Tudo parecia irremediavelmente perdido no fim dos anos 1970 e começo dos 1980. Bandas de arena tocando em palcos de dezenas de metros de altura a centenas de metros do público, discos como o Tusk, do Fleetwood Mac, sendo gravados por mais de um milhão de dólares (!!!). Mesmo os Ramones, em sua busca por sucesso comercial, gastavam muito dinheiro contratando Phil Spector como produtor do álbum End of the Century, de 1980, e atingindo um lugar alto nas paradas de vendas com o single ‘Baby I love you’, que além de ser um cover, é uma música absolutamente nada punk ou ‘ramoníaca’.

Então, em Hermosa Beach, uma pequena cidade praiana próxima a Los Angeles, surgiu algo diferente. Um grupo de jovens que não se identificava em nada com o rock do momento, que gostava das músicas punks, começou a tocar. Mas com uma característica: tocar ainda mais rápido e de modo ainda mais agressivo que as bandas punk em que eles se inspiravam. Nascia a Black Flag e com ela, e ao redor dela, algumas outras bandas, como Red Kross e, posteriormente, Circle Jerks e Descendents.

Mas se o punk estava morto para a indústria musical, quais as chances que um hardcore punk (ou, numa tradução livre, os ‘punks casca-grossa’) teria de conseguir espaços para tocar, ou gravar discos? O Black Flag decidiu não fazer as coisas por dentro da indústria e, assim, ainda que não tivessem consciência disso na época, criaram muitas bases que mudaram os rumos do rock e mesmo da indústria musical nos anos seguintes.

Greg Ginn, guitarrista do Black Flag, criou um selo, o SST Records. Na falta de gravadoras interessadas em lançar suas músicas, eles seriam sua própria gravadora. E levaram essa ética de trabalho e ‘faça você mesmo’ a praticamente todos os aspectos da vida da banda. Eles gravavam suas próprias músicas, mandavam prensar, faziam a arte de capa, vendiam seus discos, agendavam seus shows, carregavam seus instrumentos, sem empresários, gerentes, com muito trabalho e bem longe desse aspecto de celebridade ou rock star. Tocavam aonde houvesse interessados, mesmo que para pouquíssimas pessoas. Viajavam juntos na van com os equipamentos e, muitas vezes, dormiam na própria van ou em casas de pessoas da plateia (e considerando que o público era em geral composto por adolescentes, na casa dos pais desses garotos...).

Do outro lado dos EUA, em Washington, na mesma época, surgia uma banda composta por quatro negros, com uma proposta simples: ser a banda mais rápida do mundo. Era o Bad Brains, que realmente impressiona pela fúria de suas músicas. O Bad Brains inspirou o surgimento (e incentivou bastante) do Minor Threat. Ian Mackaye e Jeff Nelson, vocalista e baterista do Minor Threat, também fundaram um selo de gravação, a Dischord Records. Diferente da SST (que passou a gravar bandas de várias partes do EUA e até de outros países), a Dischord sempre ficou mais preocupada em lançar e incentivar bandas da região de Washington e mostrar os caminhos para que bandas de outras partes criassem seus próprios selos. O Minor Threat seguia a mesma ética de trabalho do Black Flag, viajando, tocando aonde desse nas mesmas bases (carregando instrumentos, agendando por conta própria, etc). Eles ainda tinham algumas características diferentes: tentavam cobrar ingressos o mais barato possível e forçavam para que seus shows fossem liberados para todas as idades.

Essa rede criada pelas bandas ia a locais onde nunca existiram shows antes, incentivando o público a participar deles, a montar bandas, a gravar e a fazer shows. Criou-se uma ‘cena’ hardcore em todos os EUA, que se espalhou pelo mundo.

(Continua na II PARTE)

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