Túlio
‘Maravilha’ [Crédito: desconhecido] e Ray Cappo (Youth of today) [Crédito: BJ
Papas] no meio do público
por DANILO R. PAIVA
escrito para o Mundo Botafogo
Tenho a plena convicção de que uma parte muito importante de quem
eu sou se deve à música que escuto e ao clube que torço. Ambos, cada um de uma
forma, ajudaram a moldar meu caráter e a forma como vejo o mundo. O clube,
evidentemente, é o Botafogo de Futebol e Regatas. A música certamente é menos
conhecida, uma espécie de ‘sub-sub-gênero’ musical: o hardcore, variação mais rápida, agressiva do punk rock. Isto pode até ser conversa de fã/torcedor que busca
relações entre as coisas que gosta, mas existem claras semelhanças e analogias
entre o Botafogo e o hardcore... a
primeira delas sendo: garotos em idade escolar que, sem ter a menor idéia da
importância futura do que estavam criando, mudaram o universo em que estão
inseridos (futebol e música) e - por que não? - o mundo.
O Botafogo, em especial num blogue chamado ‘Mundo Botafogo’,
dispensa apresentações. É um dos clubes mais importantes da história, é
impossível pensar no que seria o futebol brasileiro sem o Glorioso. Por isso,
seguirei falando mais do hardcore,
para que as suas relações com o Botafogo possam ser entendidas. O hardcore é uma variação da música punk, e precisamos voltar um pouco além
na linha do tempo do rock para entendermos
minimamente como surgiu. Mike Andersen, em seu livro ‘Dance of Days: Duas
décadas de Punk na capital dos EUA’ traça um quadro bastante interessante sobre
o rock no fim dos anos 1960 e começo
dos 1970:
"Muito da ideologia dos anos 1960, apesar de tudo, parecia
contaminada pelo hedonismo e interesse pessoal. (...)
O rock também sentiu o baque. Em parte por conta da morte prematura de alguns de seus líderes criativos. Contudo, mesmo
antes disso, já estava sendo encaminhado um divórcio gradativo do rock com a
política radical da contracultura. Os interesses pessoais de um rock star
dificilmente seriam aprimorados através da destruição do sistema que tornava
possível seu alto padrão de vida. (...) Os simples frutos do sucesso,
combinados com as exigências dos negócios, foram suficientes para conduzir os
roqueiros rebeldes para o estabilishment. (...)
Conforme os sonhos dos anos 1960 perdiam força, o rock se
tornava – mais uma vez – mero entretenimento. Algumas estrelas como Joplin,
Hendrix e Morrisson viraram ícones, e foram poupados do embaraço da
instabilidade criativa e da humilhação comercial por suas mortes. Contudo,
artistas como os Rolling Stones, The Who e Dylan ostentavam um estilo de vida cheio
de glamour, protegidos do mundo através de sua riqueza, mas sua música perdera
vitalidade. Ao mesmo tempo, montanhas de dinheiro estavam sendo investidas em
gravações, produções e marketing relacionados ao rock. Em meados dos anos 1970,
o rock era altamente lucrativo, profissional e chato pra diabo!”
Pessoalmente, eu
acrescentaria um ‘pretensioso’ ao lado do lucrativo, profissional e chato pra
diabo. As músicas eram cada vez mais elaboradas, longas, cheias de solos. O rock star era extravagante, quase
inalcançável. Os shows em palcos enormes, em arenas, com a banda completamente
distante do público.
O surgimento do punk rock, pelos meados dos anos 1970,
quebrou esse cenário. O rock voltava
a ser simples, as músicas voltavam a ter 3 minutos, os membros das bandas eram ‘gente
comum’ com quem a garotada podia se relacionar (são famosas as fotos dos
Ramones indo para ensaios e espetáculos de metrô em NY carregando seus
instrumentos). O rock voltava a ser barulhento,
‘perigoso’ e a incomodar. Com bandas
como The Clash, vieram letras mais contestadoras, e com os Ramones surgiram
todas as bases musicais desse estilo. Mas, apesar de todo o oxigênio, de toda a
fúria, a nova energia e estímulo que a música punk trouxe ao rock, é
possível dizer que as bandas desse estilo nunca souberam, ou quiseram,
transformar a indústria musical na qual estavam inseridas. O esquema ‘empresário/produtor/gravadora’
era a regra. Bandas como Stooges, MC5, NY Dolls e muitas outras deixaram de
existir quando foram demitidas por gravadoras, devido a vendas abaixo do
projetado. Os Ramones passaram praticamente toda a carreira tentando o
reconhecimento de rock star, o
sucesso comercial.
Os
‘garotos’: Minor Threat em 1981 [Crédito: Rebecca Hammel] e Botafogo FC de 1907
[Crédito: desconhecido]
Mas algo novo e fora
dos padrões também incomodava, e o sensacionalismo explorou o punk até a última gota, criando um
perfil ‘assustador’ para esse tipo de música, suas bandas e público. Se havia
surgido como um furacão no meio dos anos 1970, antes do final da década, para a
grande indústria o punk já estava
morto, substituído pelo que foi batizado de new
wave, sua versão domesticada, tanto na música quanto no visual e
comportamento, com o tipo certo de ‘rebeldia’ estudada e que é aceita por pais,
rádios, escolas.
Tudo parecia
irremediavelmente perdido no fim dos anos 1970 e começo dos 1980. Bandas de
arena tocando em palcos de dezenas de metros de altura a centenas de metros do
público, discos como o Tusk, do
Fleetwood Mac, sendo gravados por mais de um milhão de dólares (!!!). Mesmo os
Ramones, em sua busca por sucesso comercial, gastavam muito dinheiro contratando
Phil Spector como produtor do álbum End of the Century, de 1980, e atingindo um
lugar alto nas paradas de vendas com o single ‘Baby I love you’, que além de
ser um cover, é uma música absolutamente nada punk ou ‘ramoníaca’.
Então, em Hermosa
Beach, uma pequena cidade praiana próxima a Los Angeles, surgiu algo diferente.
Um grupo de jovens que não se identificava em nada com o rock do momento, que gostava das músicas punks, começou a tocar. Mas com uma característica: tocar ainda
mais rápido e de modo ainda mais agressivo que as bandas punk em que eles se inspiravam. Nascia a Black Flag e com ela, e ao
redor dela, algumas outras bandas, como Red Kross e, posteriormente, Circle Jerks
e Descendents.
Mas se o punk estava morto para a indústria
musical, quais as chances que um hardcore
punk (ou, numa tradução livre, os ‘punks casca-grossa’) teria de conseguir
espaços para tocar, ou gravar discos? O Black Flag decidiu não fazer as coisas
por dentro da indústria e, assim, ainda que não tivessem consciência disso na
época, criaram muitas bases que mudaram os rumos do rock e mesmo da indústria musical nos anos seguintes.
Greg Ginn,
guitarrista do Black Flag, criou um selo, o SST Records. Na falta de gravadoras
interessadas em lançar suas músicas, eles seriam sua própria gravadora. E
levaram essa ética de trabalho e ‘faça você mesmo’ a praticamente todos os
aspectos da vida da banda. Eles gravavam suas próprias músicas, mandavam
prensar, faziam a arte de capa, vendiam seus discos, agendavam seus shows,
carregavam seus instrumentos, sem empresários, gerentes, com muito trabalho e
bem longe desse aspecto de celebridade ou rock
star. Tocavam aonde houvesse interessados, mesmo que para pouquíssimas
pessoas. Viajavam juntos na van com os equipamentos e, muitas vezes, dormiam na
própria van ou em casas de pessoas da plateia (e considerando que o público era
em geral composto por adolescentes, na casa dos pais desses garotos...).
Do outro lado dos
EUA, em Washington, na mesma época, surgia uma banda composta por quatro
negros, com uma proposta simples: ser a banda mais rápida do mundo. Era o Bad Brains,
que realmente impressiona pela fúria de suas músicas. O Bad Brains inspirou o
surgimento (e incentivou bastante) do Minor Threat. Ian Mackaye e Jeff Nelson,
vocalista e baterista do Minor Threat, também fundaram um selo de gravação, a
Dischord Records. Diferente da SST (que passou a gravar bandas de várias partes
do EUA e até de outros países), a Dischord sempre ficou mais preocupada em
lançar e incentivar bandas da região de Washington e mostrar os caminhos para
que bandas de outras partes criassem seus próprios selos. O Minor Threat seguia
a mesma ética de trabalho do Black Flag, viajando, tocando aonde desse nas
mesmas bases (carregando instrumentos, agendando por conta própria, etc). Eles
ainda tinham algumas características diferentes: tentavam cobrar ingressos o
mais barato possível e forçavam para que seus shows fossem liberados para todas
as idades.
Essa rede criada
pelas bandas ia a locais onde nunca existiram shows antes, incentivando o
público a participar deles, a montar bandas, a gravar e a fazer shows. Criou-se
uma ‘cena’ hardcore em todos os EUA,
que se espalhou pelo mundo.
(Continua na II PARTE)
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