Públicos
do futebol [Crédito: desconhecido] e da música [Crédito: Edward Colver]
por DANILO R. PAIVA
escrito para o Mundo Botafogo
Mas nem tudo era
trabalho e criação. A música agressiva trouxe uma plateia violenta. O hardcore se consumia em violência em
meados dos anos 1980, afastando algumas bandas e público que estava desde o
começo das coisas. O Black Flag mudou um pouco seu estilo musical, fugindo mais
e mais do hardcore ‘tradicional’ e
caminhando para alguns experimentalismos com metal ou até mesmo rock psicodélico.
O Minor Threat, com
sua política de shows para todas as idades e por uma postura de alguns membros
(e em algumas letras da banda) de não beber / fumar / se drogar, acabou
involuntariamente criando um ‘movimento’, chamado de straight edge, que em muitos momentos foi quase uma milícia
violenta policiando e agredindo o público que bebesse ou fumasse nos shows.
Cansado dessa sua ‘cria’
(o straight edge) e de gente olhando
para eles como se fossem guias de algo, a banda acabou ainda em 1983.
A SST Records começou
a lançar bandas não exatamente do hardcore,
mas que surgiram do hardcore e
expandiram seus limites, musicalmente, conceitualmente. Meat Puppets,
Minutemen, Saccarine Thrust não tocavam necessariamente esse estilo (chamam
essas bandas de ‘pós-hardcore’), mas
se valiam da mesma abertura criada pelos pioneiros para fazer uma música
independente bem diferente de todo o mainstream
que tocava nas grandes rádios comerciais e MTV.
O hardcore não morreu. As bandas se
renovaram, a cena se reoxigenou, a violência diminuiu. Novas gerações de bandas
resgataram o sentimento dos shows, dos palcos com participação ativa da
plateia. Sempre tentando manter o espírito não comercial, a cena feita pelas pessoas
da cena, não por empresários.
Do meio para o final
dos anos 1980, o hardcore começou a
influenciar outros estilos, como o metal. Bandas que hoje estão entre as
maiores e mais importantes em todo o mundo, vendendo milhões de discos e
tocando para centenas de milhares de pessoas, como o Metallica, foram muito
influenciadas, no começo da carreira, pelo hardcore.
E toda a estrutura independente de shows, zines (revistas locais sobre música,
com tiragem normalmente pequena, feitas por membros de bandas e/ou fãs),
distribuição e venda de discos que passou a existir criou bases para o
surgimento, no começo dos anos 1990, de toda uma cena musical que explodiu em
todos os aspectos: cultural, comercial, de público, de comportamento e mudou
completamente a indústria – bandas como Nirvana, para citar o maior exemplo,
são filhas diretas do hardcore e do ‘pós-hardcore’. Não por acaso, um dos discos
mais famosos do Nirvana, o Unplugged MTV,
tem três músicas do Meat Puppets, com participação de membros dessa banda na
gravação, inclusive. Praticamente todo o rock
que foi feito nos anos 1990 sofreu, direta ou indiretamente, influência do hardcore.
De maneira (acredite,
apesar do texto já ser bem grande) bastante resumida, essa é um pouco da
história e da definição do hardcore.
Mas... como fazer relações e analogias disso tudo com o nosso Glorioso Botafogo
FR?
Sou capaz de ver
muitas... a primeira, e mais óbvia, é: um grupo de garotos que fundou algo sem
saber que isso mudaria o mundo. É impossível pensar em futebol hoje sem pensar
em Botafogo. Outros clubes podem ter mais torcedores ou mais títulos. Mas se eles
nunca tivessem existido, seus torcedores e seus troféus seriam de alguém
diferente. Se o Botafogo nunca tivesse existido, não teríamos Garrincha ou
Nilton Santos no registro que os caracterizou como pessoas e como profissionais,
Heleno de Freitas não teria o espaço que desfrutou como futebolista único nos
anos 1940, Danilo ou Paulo Valentim não teriam feito carreira no
exterior, Afonsinho e Nei Conceição não teriam a rebeldia que os motivou, e muito provavelmente o futebol brasileiro não teria vencido
cinco copas e talvez não fosse o esporte que é hoje. O mesmo é válido para o hardcore: os shows nunca foram para
muita gente, os discos mais vendidos chegaram a alguns milhares de cópias. Mas
é impossível negar o impacto cultural do grunge
capitaneado pelo Nirvana, ou a importância de bandas como Metallica ou Foo Fighters,
influenciadas pelo hardcore (Dave
Grohl tocou numa banda de hardcore
antes do Nirvana e Foo Fighters e sempre disse que Ian Mckaye, do Minor Threat,
é seu herói de juventude).
Loco Abreu [Crédito: Agência Globo] e Jello Biafra
(Dead Kennedys) [Crédito: desconhecido]
A torcida do Botafogo
se assemelha em alguns aspectos ao público de hardcore. Muitas vezes, não exigimos a melhor das técnicas. Quantas
vezes já xingamos um jogador técnico sem vontade que joga falando em salários e
elogiamos um jogador limitado que dava o coração em campo? Para o público do hardcore, não importa se você não toca
mais do que três acordes. Faça a coisa com energia e dedicação e fará bem
feito. Como diz uma letra do Gorilla Biscuits (banda da 3ª geração do hardcore de NY), “por que tocar para nós, se o seu coração não está nisso?”.
A ‘militância’ da
torcida do Botafogo também. Não por acaso somos tratados como Cri-Cri, Pato
Donald, etc. É muito difícil encontrar um botafoguense de cartório, muito
difícil alguém que diga “sou botafoguense mas não acompanho”. Isso é comum nos
outros clubes, não no Botafogo. No hardcore
idem. Todo o conceito de ‘cena’ e ‘apoie a cena local’ significa participação
ativa em shows, comprando discos, zines, etc. O público não é expectador passivo
de uma banda que está lá para ser adorada. Ao contrário, o público é parte da
cena, tão importante quanto as bandas. Citando novamente a mesma música do
Gorilla Biscuits, “porque o que pode
parecer besteira para você, está pulsando no meu coração!”
O Botafogo, assim
como o hardcore, quase foi vítima de
suas contradições internas e seus problemas criados por si mesmo. A ‘vocação
para o erro’ do Botafogo, a venda da sede, a quantidade que beira o
inacreditável de escroques envolvidos na direção do clube. No hardcore, a violência, as brigas entre
públicos de cidades diferentes, tudo isso foi ficando cada vez pior e pior. Por
conta disso, bandas foram parando, as pessoas se afastando, casas de espetáculo
fechando... o hardcore precisou de
umas mudanças para continuar existindo.
Há também as relações
dúbias com o amadorismo e o profissionalismo. O Botafogo foi o último dos
clubes grandes do Rio a aceitar o profissionalismo. Jogar / tocar por amor ou
por dinheiro foi uma questão importante no Botafogo dos anos 1930 e no hardcore dos anos 1980. Como não
encontrar ecos de Luiz Tovar, jogador que se aposentou aos 23 anos quando o
profissionalismo virou imperativo, porque se recusava a receber dinheiro do
clube que amava, na introdução da música Don’t Forget the Struggle, Don’t Forget
the streets, do Warzone: “nas nossas
mentes e nos nossos corações, sentimos que a música hardcore deve ficar longe
dos grandes negócios, e permanecer nas ruas, onde ela pertence”.
Fundados por garotos,
uma luta interna por ‘seguir o caminho por amor’ ou se profissionalizar no
mundo dos grandes negócios, as dificuldades decorrentes dessa escolha que,
apesar de tudo, nunca foi exatamente clara e muitas vezes não foi exatamente
uma escolha; todas as contradições internas que quase implodiram sua
existência.
O abandono dos
campeões de 1910 da Liga Metropolitana de futebol em defesa do seu camarada
Abelardo de Lamare, tal e qual um ‘Grande de España’, e a redução do clube a 12
sócios em 1911, matariam qualquer clube. Assim como shows para poucos
adolescentes cobrando ingressos baratíssimos e sem poder ‘compensar’ o prejuízo
vendendo álcool parece a receita exata para matar uma cena musical. Mas em ambos os casos, os
garotos perseveraram e mudaram o mundo, tendo um público ardoroso que ama e se
dedica a isso. Botafogo e hardcore.
Citando novamente a
música do Warzone, uma das grandes lições que aprendi com o hardcore e que tento levar como um
mantra para mim, e que espero sempre que o Botafogo faça semelhante:
Don’t forget the struggle
Don’t forget the streets
Don’t forget your roots
And don’t sell out!
Não se esqueça da luta
Não se esqueça das ruas
Não se esqueça de suas raízes
E não se venda!
Fontes de consulta:
Michael Azerrad: Our band could be
your life: scenes from the American Indie Underground 1981:1991
Mike Andersen: Dance ofDays: Duas décadas de Punk na
capital dos EUA
Steven Blush: American Hardcore –
A tribal Story
Stevie Chick: Spray Paint the
wall: the story of Black Flag
Tony Rettman: NYHC – New Yourk
Hardcore 1980 – 1990
Sugestões de Músicas:
Minor Threat: https://www.youtube.com/watch?v=sVCT941jSXg
Warzone: Don’t Forget the Struggle, Don’t Forget the Street: https://www.youtube.com/watch?v=9qhHmPvhiHI
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