domingo, 21 de agosto de 2016

BFR HC: garotos bons de bola e barulhentos que mudaram o mundo (II Parte)

Públicos do futebol [Crédito: desconhecido] e da música [Crédito: Edward Colver]

por DANILO R. PAIVA
escrito para o Mundo Botafogo

Mas nem tudo era trabalho e criação. A música agressiva trouxe uma plateia violenta. O hardcore se consumia em violência em meados dos anos 1980, afastando algumas bandas e público que estava desde o começo das coisas. O Black Flag mudou um pouco seu estilo musical, fugindo mais e mais do hardcore ‘tradicional’ e caminhando para alguns experimentalismos com metal ou até mesmo rock psicodélico.

O Minor Threat, com sua política de shows para todas as idades e por uma postura de alguns membros (e em algumas letras da banda) de não beber / fumar / se drogar, acabou involuntariamente criando um ‘movimento’, chamado de straight edge, que em muitos momentos foi quase uma milícia violenta policiando e agredindo o público que bebesse ou fumasse nos shows.

Cansado dessa sua ‘cria’ (o straight edge) e de gente olhando para eles como se fossem guias de algo, a banda acabou ainda em 1983.

A SST Records começou a lançar bandas não exatamente do hardcore, mas que surgiram do hardcore e expandiram seus limites, musicalmente, conceitualmente. Meat Puppets, Minutemen, Saccarine Thrust não tocavam necessariamente esse estilo (chamam essas bandas de ‘pós-hardcore’), mas se valiam da mesma abertura criada pelos pioneiros para fazer uma música independente bem diferente de todo o mainstream que tocava nas grandes rádios comerciais e MTV.

O hardcore não morreu. As bandas se renovaram, a cena se reoxigenou, a violência diminuiu. Novas gerações de bandas resgataram o sentimento dos shows, dos palcos com participação ativa da plateia. Sempre tentando manter o espírito não comercial, a cena feita pelas pessoas da cena, não por empresários.

Do meio para o final dos anos 1980, o hardcore começou a influenciar outros estilos, como o metal. Bandas que hoje estão entre as maiores e mais importantes em todo o mundo, vendendo milhões de discos e tocando para centenas de milhares de pessoas, como o Metallica, foram muito influenciadas, no começo da carreira, pelo hardcore. E toda a estrutura independente de shows, zines (revistas locais sobre música, com tiragem normalmente pequena, feitas por membros de bandas e/ou fãs), distribuição e venda de discos que passou a existir criou bases para o surgimento, no começo dos anos 1990, de toda uma cena musical que explodiu em todos os aspectos: cultural, comercial, de público, de comportamento e mudou completamente a indústria – bandas como Nirvana, para citar o maior exemplo, são filhas diretas do hardcore e do ‘pós-hardcore’. Não por acaso, um dos discos mais famosos do Nirvana, o Unplugged MTV, tem três músicas do Meat Puppets, com participação de membros dessa banda na gravação, inclusive. Praticamente todo o rock que foi feito nos anos 1990 sofreu, direta ou indiretamente, influência do hardcore.

De maneira (acredite, apesar do texto já ser bem grande) bastante resumida, essa é um pouco da história e da definição do hardcore. Mas... como fazer relações e analogias disso tudo com o nosso Glorioso Botafogo FR?

Sou capaz de ver muitas... a primeira, e mais óbvia, é: um grupo de garotos que fundou algo sem saber que isso mudaria o mundo. É impossível pensar em futebol hoje sem pensar em Botafogo. Outros clubes podem ter mais torcedores ou mais títulos. Mas se eles nunca tivessem existido, seus torcedores e seus troféus seriam de alguém diferente. Se o Botafogo nunca tivesse existido, não teríamos Garrincha ou Nilton Santos no registro que os caracterizou como pessoas e como profissionais, Heleno de Freitas não teria o espaço que desfrutou como futebolista único nos anos 1940, Danilo ou Paulo Valentim não teriam feito carreira no exterior, Afonsinho e Nei Conceição não teriam a rebeldia que os motivou, e muito provavelmente o futebol brasileiro não teria vencido cinco copas e talvez não fosse o esporte que é hoje. O mesmo é válido para o hardcore: os shows nunca foram para muita gente, os discos mais vendidos chegaram a alguns milhares de cópias. Mas é impossível negar o impacto cultural do grunge capitaneado pelo Nirvana, ou a importância de bandas como Metallica ou Foo Fighters, influenciadas pelo hardcore (Dave Grohl tocou numa banda de hardcore antes do Nirvana e Foo Fighters e sempre disse que Ian Mckaye, do Minor Threat, é seu herói de juventude).

Loco Abreu [Crédito: Agência Globo] e Jello Biafra (Dead Kennedys) [Crédito: desconhecido] 

A torcida do Botafogo se assemelha em alguns aspectos ao público de hardcore. Muitas vezes, não exigimos a melhor das técnicas. Quantas vezes já xingamos um jogador técnico sem vontade que joga falando em salários e elogiamos um jogador limitado que dava o coração em campo? Para o público do hardcore, não importa se você não toca mais do que três acordes. Faça a coisa com energia e dedicação e fará bem feito. Como diz uma letra do Gorilla Biscuits (banda da 3ª geração do hardcore de NY), “por que tocar para nós, se o seu coração não está nisso?”.

A ‘militância’ da torcida do Botafogo também. Não por acaso somos tratados como Cri-Cri, Pato Donald, etc. É muito difícil encontrar um botafoguense de cartório, muito difícil alguém que diga “sou botafoguense mas não acompanho”. Isso é comum nos outros clubes, não no Botafogo. No hardcore idem. Todo o conceito de ‘cena’ e ‘apoie a cena local’ significa participação ativa em shows, comprando discos, zines, etc. O público não é expectador passivo de uma banda que está lá para ser adorada. Ao contrário, o público é parte da cena, tão importante quanto as bandas. Citando novamente a mesma música do Gorilla Biscuits, “porque o que pode parecer besteira para você, está pulsando no meu coração!”

O Botafogo, assim como o hardcore, quase foi vítima de suas contradições internas e seus problemas criados por si mesmo. A ‘vocação para o erro’ do Botafogo, a venda da sede, a quantidade que beira o inacreditável de escroques envolvidos na direção do clube. No hardcore, a violência, as brigas entre públicos de cidades diferentes, tudo isso foi ficando cada vez pior e pior. Por conta disso, bandas foram parando, as pessoas se afastando, casas de espetáculo fechando... o hardcore precisou de umas mudanças para continuar existindo.

Há também as relações dúbias com o amadorismo e o profissionalismo. O Botafogo foi o último dos clubes grandes do Rio a aceitar o profissionalismo. Jogar / tocar por amor ou por dinheiro foi uma questão importante no Botafogo dos anos 1930 e no hardcore dos anos 1980. Como não encontrar ecos de Luiz Tovar, jogador que se aposentou aos 23 anos quando o profissionalismo virou imperativo, porque se recusava a receber dinheiro do clube que amava, na introdução da música Don’t Forget the Struggle, Don’t Forget the streets, do Warzone: “nas nossas mentes e nos nossos corações, sentimos que a música hardcore deve ficar longe dos grandes negócios, e permanecer nas ruas, onde ela pertence”.

Fundados por garotos, uma luta interna por ‘seguir o caminho por amor’ ou se profissionalizar no mundo dos grandes negócios, as dificuldades decorrentes dessa escolha que, apesar de tudo, nunca foi exatamente clara e muitas vezes não foi exatamente uma escolha; todas as contradições internas que quase implodiram sua existência.

O abandono dos campeões de 1910 da Liga Metropolitana de futebol em defesa do seu camarada Abelardo de Lamare, tal e qual um ‘Grande de España’, e a redução do clube a 12 sócios em 1911, matariam qualquer clube. Assim como shows para poucos adolescentes cobrando ingressos baratíssimos e sem poder ‘compensar’ o prejuízo vendendo álcool parece a receita exata para matar uma cena musical.  Mas em ambos os casos, os garotos perseveraram e mudaram o mundo, tendo um público ardoroso que ama e se dedica a isso. Botafogo e hardcore.

Citando novamente a música do Warzone, uma das grandes lições que aprendi com o hardcore e que tento levar como um mantra para mim, e que espero sempre que o Botafogo faça semelhante:

Don’t forget the struggle
Don’t forget the streets
Don’t forget your roots
And don’t sell out!

Não se esqueça da luta
Não se esqueça das ruas
Não se esqueça de suas raízes
E não se venda!

Fontes de consulta:

Michael Azerrad: Our band could be your life: scenes from the American Indie Underground 1981:1991
Mike Andersen: Dance ofDays: Duas décadas de Punk na capital dos EUA
Steven Blush: American Hardcore – A tribal Story
Stevie Chick: Spray Paint the wall: the story of Black Flag
Tony Rettman: NYHC – New Yourk Hardcore 1980 – 1990

Sugestões de Músicas:

Gorilla Biscuits New Direction: https://www.youtube.com/watch?v=o6UrFLlXslI
Warzone: Don’t Forget the Struggle, Don’t Forget the Street: https://www.youtube.com/watch?v=9qhHmPvhiHI

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