terça-feira, 3 de março de 2015

De avô para neto ou o ‘circo’ perdido nas brumas da memória… (7)

por PEDRO ARÊAS, 25/08/2014

João Saldanha era comunista dos bons, não levava desaforo pra casa. Jornalista dos bons, soltava o verbo contra desigualdades. Técnico dos bons, fez o time jogar por música, fez os palhaços darem o melhor de si em cada espetáculo. Organizou a bagunça de forma desorganizada.

Fez o povo feliz. Fez o povo acreditar. Até as salas de cinema passavam tapes dos espetáculos antes da exibição dos filmes, através do Canal 100, com um estilo de filmagem que dava um tempero especial ao bailado dos artistas, dando ênfase da cintura para baixo, com uma música brasileira instrumental que ainda batuca em minha cuca. Havia pessoas que admiravam mais o trailer do que a longa-metragem. Festa nas salas atapetadas. Mas há coisas que só acontecem com o Botafogo.

Como diria mais um especial botafoguense, poetinha vagabundo, Vinícius de Moraes, tristeza não tem fim, felicidade sim... Felicidade foi-se embora. Chegou um regime duríssimo. Marcação serrada. Apologia às drogas. Chegou o momento de tristeza plena, à alegria foi ficando na falha memória de quem por lá esteve, infelizmente não havia TVs nos picadeiros espalhados pelos interiores dessa imensa avenida chamada Brasil para registrar as comédias mais qualificadas já vistas. Tristeza. Filmes de terror. Momento em que o ser humano arranca o cérebro da caixa craniana, engaveta-o e sai a distribuir tapas e tiros nos seus semelhantes em prol de alguma surrealidade ordenada pelos escalões mais altos da ignorância.

E quanta tristeza! Chegou a ditadura militar e suas razões inconcebíveis. Primeiro golpe em 1964. Covarde, o nome já diz tudo, golpe, pelas costas, entrada desleal em sua população, que distraída, sorria ainda leve e nem reparou na agressiva jogada suja. Tesoura voadora, digna de cartão vermelho. Ensaio orquestrado por norte-americanos de interesses promíscuos e executado por brasileiros, isso mesmo, nosso povo extinguindo nossa prole. E em 1968 a crônica de uma morte anunciada, o segundo e fatal golpe, o fim de uma era fantástica, na cara dura mesmo, pela frente, entrada com as duas solas nos dois joelhos do Brasil. Fraturas expostas. Doloridas. Fim das galerias de arte mutantes, o fim de uma cultura pura e popular, o fim do circo alvinegro. Lona desarmada.

Até 1970 ainda aproveitaram resquícios da trupe montada pelo supracitado João Saldanha e deram espetáculo no México, último ato, anos de chumbo, colocaram o covarde e condescendente Zagalo em seu lugar que alterou apenas um palhaço no time a mando de um general solitário que andava com um cigarrinho em uma mão e radinho de pilha na outra, quando não estava a assinar sentenças de execução de brasileiros autênticos, como Marighella. Torturas e desaparecimento de talentosos circenses. Saldanha disse em alto e bom som ao ditador escale seu ministério, que eu escalo minha equipe... Claro, foi mandado para a rua da amargura, por pouco não colou suas costas em um paredão com os olhos vendados.

Chega a ser cômica esta tragédia, a arte colaborando para uma forma de governo desumana que desprestigiava a própria. A partir de então, meu Neto, a perseguição contra os talentos se fez em todos os possíveis meios. O retrato de uma sociedade indecisa e encurralada, deu-se também nos circos. Liberdade? Expulsa do dicionário brasileiro.

SUDERJ informa, substituição no Botafogo de Futebol e Regatas. Saem: Atchim, Espirro, Carequinha, Chuvisco, Arrelia, Patati-Patatá, Bolinha, Bozo, Papai Papudo, Piolin, Pierrot Elitizado, Torresmo, Didi, Dedé, Mussum, Zacarias, Tião Macalé, Sargento Pincel... Entram: Recruta, Soldado, Cabo, Sargento, Subtenente, Cadete, Aspirante, Tenente, Capitão, Major, Tenente-coronel, Coronel, General e Marechal. MARECHAL? MARECHAAAAALLLLLLL?...

Fomos desalojados de nosso belo Palacete Mourisco no bairro que originou o nome de nossa constelação, fábrica de inigualáveis gênios, para Marechal Hermes. Rasgaram nossa lona, furaram os pneus de nossos triciclos, esburacaram nossa cama elástica, esconderam nossas tintas, queimaram nossas perucas, desmontaram nossas arquibancadas, amassaram nossos trailers, lesionaram joelhos e tornozelos de nossos artistas, emudeceram à força nossos palhaços. Peraí, MARECHAL??... Puta que me pariu!

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