por João Máximo
Revista Placar, 1999
Há
quase quatro décadas fins de 1961, um jornal do Rio de Janeiro e uma
revendedora de automóveis promoveram concurso para premiar com um Simca
Chambord o mais querido jogador do futebol carioca. Vencedor: Garrincha. Há
quem jure que não apenas os botafoguenses votaram nele, mas também
rubro-negros, vascaínos, tricolores e toda sorte de inimigos.
Todo
mês, 1.200 cartas chegam à redação de PLACAR. Nelas, os leitores falam de tudo
e de todos. Invariavelmente, os mais jovens querem conhecer a vida de um grande
jogador. Pedem Pelé, sim. Mas pedem muito mais outro nome: Garrincha. Pode
haver certo mistério nessa escolha, mas não surpresa. Mistério porque o ídolo,
todo ídolo, já é em si um ser misterioso. Não há quem explique, dentro dos
limites da lógica, por que ele e não outro. Nem há quem aponte pelo menos um
dos encantos que o fazem mais admirado, amado, endeusado, cultuado e idolatrado
que os demais. A qualidade do seu futebol ou a força do seu carisma não servem
como resposta.
Garrincha
sempre foi um mistério. Como craque e como ídolo. Não surpreende que jovens que
não o viram jogar, a não ser pelas poucas imagens filmadas que restam dele, o
elejam. Porque os dribles de Garrincha, seu passar por cima da bola, sua
corrida até a linha de fundo, seus cruzamentos para vavás e amarildos marcarem
seus gols, tudo isso tem pouco a ver com a perenidade do ídolo Garrincha, amado
hoje como há quatro décadas.
O
craque Garrincha foi um pouco como o Brasil: analfabeto, caipira, pés
descalços, mais esperto que inteligente, intuitivo, pouco saudável. O que se
podia esperar de um macunaíma de chuteiras? Nada. Com aquelas pernas tortas
(arqueadas para o mesmo lado, numa aberração anatômica que levou um ortopedista
a classificá-lo como ¿aleijado¿), nem devia poder equilibrar o próprio corpo,
quanto mais jogar futebol.
Como
o Brasil, Garrincha existia, apesar de tudo. Por menos que se esperasse dele.
Nós,
os de 20 anos daqueles tempos, tínhamos de início certo preconceito contra o
jogador. Depois de sofrermos a perda de duas Copas do Mundo (1950 e 1954),
queríamos para a próxima uma Seleção culta e inteligente como as européias, com
uma disciplina tática como as européias, com jogadores atleticamente saudáveis
como os europeus. Vivíamos obsessivamente essa fantasia aqui implantada pelos
jornais estrangeiros que, tendo testemunhado o giro europeu da Seleção
Brasileira em 1956, traçaram dela um perfil, no mínimo, caricato. Segundo eles,
nossos jogadores eram verdadeiros selvagens, emocionalmente imaturos,
maleducados, indisciplinados. Uns alimentavam-se de peixe cru. Outros andavam
pelos corredores de hotéis de luxo com toalha amarrada na cintura, sempre
prontos a atacar a primeira camareira que aparecesse.
Foi
muito com base na imprensa européia que o alto comando da CBD (hoje CBF)
elaborou um relatório recomendando que o treinador de 1958 evitasse convocar
jogadores psicologicamente despreparados, de baixo QI, de formação meio sobre o
primitivo. E mais: que desse preferência aos arianos.
Moleque de rua
Garrincha
era tudo aquilo que o relatório condenava. Aqui, permito-me um depoimento
pessoal. A dois meses de viajarem para a Copa de 1958, os convocados por
Vicente Feola foram à Faculdade Nacional de Odontologia, na Praia Vermelha,
Zona Sul do Rio, para serem examinados pelos quartanistas (o doutor Trigo era o
dentista da delegação, mas exames e tratamentos foram feitos por estudantes
quartanistas e recém-formados, sob o comando do catedrático de Clínica
Odontológica). Ao ver Garrincha chegar, barba por fazer, chinelos, jeans puído
nos joelhos, camisa aberta no peito, brincando com os outros jogadores com a
infantilidade e a inconveniência de um moleque de rua, um dos recém-formados,
apaixonado por futebol, perguntou a um quartanista, não menos apaixonado:
–
“Acha que com um cara assim a gente pode ser campeão do mundo?”
Resposta
do quartanista:
–
“Nunca!”
Custamos
muito a descobrir Garrincha, o craque Garrincha, o ídolo Garrincha, o Brasil em
Garrincha. Os torcedores do Botafogo, por motivos óbvios, já o conheciam.
Estava no clube de General Severiano desde 1953, quando o estranho apelido de
infância ganhou versões mais exóticas ainda, como Garrinha e Gualicho. Nós, que
nem sabíamos do relatório, no fundo acreditávamos que Copa do Mundo não se
ganhava com macunaímas, mas com modelos de estátua olímpica. Como Bellini. Ou
alguém tem dúvida de que foi menos pelo futebol do que pelo tipo apolíneo que
escolheram Bellini para nosso capitão na Suécia? Quanto a Garrincha, depois de
1958 ficou sendo a nossa primeira unanimidade nacional. Como dizem, antes
tarde...
De
certa maneira, em dezenove anos de carreira, Garrincha nos ensinou a ver o
futebol por um ângulo menos científico e mais poético. Relatórios tiveram de
ser rasgados por sua causa. E nós, os jovens daqueles tempos, fomos forçados a
rever os nossos conceitos, as nossas verdades sobre futebol. Mais que tudo,
aprendemos que táticas ferozes, sistemas de jogo apoiados em equações
complicadas, QIs de Einstein, culturas enciclopédicas, saúdes de ferro, tudo
isso pode valer menos que um drible. Com toques desconcertantes, ele foi três
vezes campeão carioca (1957, 1961 e 1962, pelo Botafogo) e voltou da Suécia
(1958) e do Chile (1962) como campeão mundial.
Craques sem mistério
A
história de Garrincha, o craque e o ídolo, é bastante conhecida: o menino
mirrado que nasceu em Pau Grande, distrito de Magé (RJ) e deixou a cidade para
brilhar no Botafogo, na Seleção, no mundo, e que, no meio do caminho, foi
conquistando mulheres em toda parte, produzindo filhos aqui e na Suécia, sempre
com seu jeito de passarinho ingênuo, puro, sonso e bom. Um menino que nunca
cresceu de todo e que, por isso, todos mimavam. É um Garrincha alegre esse e
não por acaso cognominado de ¿a alegria do povo¿.
O
Garrincha dos dribles infernais, sempre pela direita, conhecido, manjado,
previsível, mas inevitável, e que, ao derrubar marcadores genericamente
chamados de ¿joão¿, levava os estádios a uma gargalhada só. As arquibancadas
eram mais felizes diante dele, o Garrincha meio Chaplin, meio Mazaropi, entre o
gênio e o matuto, impossível de acontecer (como o país onde nascera) e que
ainda assim acontecia. E como.
Deve
ser este Garrincha que ainda hoje é tão popular. Um Garrincha que muitos não
viram, mas sobre o qual ouviram histórias, anedotas, lendas. Parece já não
haver no futebol lugar para personagens carregados de tão sublimes mistérios. Naqueles
tempos, o que não sabíamos de Garrincha, imaginávamos. E a imaginação é mil
vezes mais sedutora que a realidade. Os craques de agora já não têm a mesma
magia.
Sabemos
tudo deles: onde moram, como são, sua família, seus hábitos, suas namoradas,
seus qüiproquós, seus pecados. Se um jogador se orgulha muito mais do relógio
de ouro que ostenta no pulso do que da camisa da Seleção, ficamos sabendo pelo
próprio, ao vivo e em cores. São seres sem segredos os craques de hoje e, como
tal, sem encanto. O torcedor precisa do mistério para amar o ídolo. Talvez por
isso tenham votado no Garrincha que imaginam.
Já
Garrincha, o homem, esse sempre foi um mistério do qual nunca quisemos nos
aproximar. Acredito que nós da chamada imprensa esportiva sempre optamos pelo
lema ¿imprima-se a lenda¿ quando se tratava de escrever sobre os nossos
craques. Quando chegou ao Corinthians, em 1966, com 33 anos, Garrincha já vivia
os problemas da longa convivência com a bebida. Seria assim também no Flamengo,
em 1969, e no pequeno Olaria-RJ, onde ficou entre 1971 e 1972. Seguiu-se a
melancólica seqüência de clubes de aluguel que o velho ponta defendia por uns
trocados: Juventus, do Acre; CEUB, de Brasília, Milionários, da Colômbia;
Souza, da Paraíba. Ainda assim, a imprensa preferia falar do mito sempre
folclórico, mas cada vez mais irreal. Com isso, camuflamos Garrincha, o homem.
O ídolo destruído
Nunca
quisemos ver que, enquanto o craque driblava em campo, o homem se destruía fora
dele; enquanto o jogador nos conquistava com sua doce irresponsabilidade,
essência final da sua arte, o menino se consumia ao longo de uma vida tão torta
quanto suas pernas. Foram contusões e ressacas mal curadas, cartolas e amigos
mal-intencionados, negócios e casamentos malfeitos. Este, o homem, morto em 20
de janeiro de 1983, nem a biografia impiedosamente verdadeira de Ruy Castro
conseguiu sobrepor-se ao craque. Não aos olhos do torcedor de quem, para todo o
sempre, Garrincha é ídolo.
Quanto
a mim, vivo em eterna penitência por este fascinante Brasil chamado Garrincha.
Por ser parte da imprensa esportiva que, transformando-o em lenda, esqueceu-se
do homem. E por aquele imperdoável ''nunca!'' de quarenta anos atrás.
Nota do Mundo Botafogo:
Embora publique integralmente o texto por respeito ao autor, João Máximo, o
editor deste blogue não concorda com a visão biográfica publicada por Ruy
Castro. A biografia realça o alcoolismo de Garrincha e não a bola. Uma
biografia de um futebolista famoso como Garrincha tem necessariamente como tema
central a bola, e como rodapé o álcool. Ruy Castro faz o inverso. Ruy Castro é
um indefectível flamenguista que na década de 1960 sofreu na pele os bailes que
Garrincha deu ao seu clube.
3 comentários:
Caro Rui Moura Duarte. Sem dúvida, o seu comentário sobre o que Ruy Castro escreveu é o que é de mais importante na postagem. Entre o homem e a obra, em se tratando de gênios, fica-se sempre com a obra. Quem se interessou pela vida de Einstein? Só os fofoqueiros. Os cientistas se preocupavam e se preocupam com E=mc².
Comecei a ler o livro sobre Garrincha e lá pela página 32 rasguei-o e joguei fora. Antes já o havia folheado. A afirmação de que Garrincha era geneticamente dependente de álcool é um absurdo sem tamanho. Hoje, já se sabe -já se sabia antes que o meio social é muito mais determinante da ingestão de álcool do que qualquer outra variável- pela codificação do genoma humano, que não existe um gene do alcoolismo, assim como não há um gene da prostituição, do criminoso, do corrupto e etc... Ruy Castro escreveu maldosamente sobre o homem e não sobre a obra. Abraços. Loris
Rui,
Não vejo jogos dos cathartiformes pela TV globo.
Soube que ontem, ao final do jogo, um funcionário da TV que estava no gramado, pensando que o som estava desligado xingou o Botafogo!
Muitos relatos sobre o fato!
Acho que o insulto foi por conta do minuto de silêncio (nunca existiu, uma vez que os cathartiformes não respeitam a si, muito menos aos outros) pedido pela morte de NS!
Pelo twitter disseram ser o jornalista Eric Faria. Hoje ele postou dizendo que não o fez!
Ficará o dito pelo não dito e a TV não mostrará ou punirá o péssimo profissional.
Abs e Sds, Botafoguenses!!!
Loris, Ruy Castro escreveu um livro para enxovalhar a imagem de Garrincha e diminuir o ídolo do Botafogo; Henfil desenhou o Cri-Cri para enxovalhar o Botafogo e a sua torcida; hoje vem um cathartiforme escrever um prefácio sobre um livro publicado acerca de Mané Garrincha e acaba o prefácio a tecer loas ao Flamengo!!!!
E NÓS DEIXAMOS!
Eu não rasguei o livro, mas não li mais do que 30 páginas até hoje. Nós os dois somos feitos da mesma massa quanto à rejeição da não qualidade. E os autores acima não têm qualidade porque não foram isentos.
E além de não serem isentos, não tinham / não têm qualidade porque ao não conseguirem ter no clube deles o que o Botafogo tinha, não tiveram nenhum pudor em escrever ou desenhar raivosamente (com a mesma ou maior raiva confessada pelo Zico) sobre o Clube da Estrela Solitária.Solitária mas deslumbrante!
Abraços Gloriosos!
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