sábado, 24 de maio de 2014

35 anos longe de um amor

[Paulo Marcelo Sampaio é o autor destas crônicas, interpretando os protagonistas pelos quais assina; as crônicas publicadas no Mundo Botafogo são uma gentileza do autor.]

por Lúcio Rangel*

Já são cem anos, quase trinta e cinco deles passados aqui em cima. Com tantos amigos por aqui é difícil achar a morte ruim. A vida é a arte do encontro, já nos ensinou o Vinicius de Moraes. Estaria mentindo se dissesse que não sinto falta das coisas terrestres. Como não sentir saudades do cotovelo apoiado no mármore frio de uma mesa do Vilariño onde, por “culpa” minha Vinicius conheceu Tom Jobim? Como esquecer dos meus porres homéricos que Ipanema assistiu? Mesmo com tanto álcool a embaralhar as idéias, ainda me restava – quase sempre – um pouquinho de lucidez. Como numa vez em que, dia já claro, entrei num bar e pedi, talvez um uísque caubói, quem sabe uma vodca. O portuga, com cara de sono e de raiva, quase quebra o copinho americano no balcão. E anuncia o preço. Era um assalto. Mas preferi não chiar. Inventei uma desculpa qualquer e fui pra casa. Disse que voltaria. E voltei. “Seu Manel, com a bebida a esse preço só bebendo com traje a rigor”. E bebi o último gole, de smoking.

Por aqui estou perto dos meus ídolos. A humildade deles me impressiona. Até hoje. Mesmo consagrados. Certa vez, um repórter perguntou a Alfredo Rocha Viana Filho qual a parte de sua obra que considerava a mais importante, se a de compositor, a do instrumentista ou a de orquestrador, Pixinguinha respondeu encabulado: “O que mais gosto é de fazer a minha musiquinha…” Um outro gênio que está no meu coração só dia desses soube de uma história. E achou a maior graça dela. Numa visita de Louis Armstrong ao Brasil, final dos anos 1950, invadi seu camarim e tarrei a latinha da pasta para os calos dos lábios. “Lúxio, eu serrr uma carra normaú”, disse-me Satchmo, com o português carregado. Há quem diga que não se faz mais música como antigamente. Isso é tolice. Para se criticar esses lepo-lelos do Psirico e essas poderosas da Anitta, generaliza-se tudo. Mas vocês não vão acreditar se eu disser que Armstrong ganhou palmas parcimoniosas, restrições tolas de alguns iniciados, incompreensão dos que gostavam de óperas, além da já sabida indiferença das esnobes que vão ao Teatro Municipal apenas para mostrar seus colares de brilhantes, brincos de águas-marinhas, braceletes de turmalina e seus vestidos de grifes. Sim, isso aconteceu!

Aqui em cima temos a chance de fazer novas amizades. Dia desses sentou na minha mesa um senhor alto, com cara de poucos amigos. Não comigo, claro. Disse que me conhecia lá da praça General Osório. Frequentava o Jangadeiros. Dividiu algumas vezes a mesa com Paulo Alberto Monteiro de Barros que, apesar de torcedor do fluminense, não achava que futebol era motivo para briga. Se pudéssemos traduzir a paz em nome e sobrenome, ela seria chamada de Arthur da Távola. João Ignácio Müller – esse o nome do cara que se sentou do meu lado – era médico. Ih, não preciso disso não, fui logo dizendo. Não era o caso, respondeu. Também era ligado em música. Tinha tido até um programa de TV na embrionária TV Globo, canal 4. A admiração por mim nascera depois de uma frase que hoje está gravada numa parede de General Severiano: “Eu não gosto de futebol. Eu gosto é do Botafogo!” Essa frase faz uma sucesso danado, me disse ele. Pena que o time não acompanhe essa paixão. Eu quis saber o por quê.

Da última vez que se meteu na política botafoguense, me disse João Ignácio, ele abriu as portas da casa para ouvir um candidato à presidente. Em meio a salgadinhos e refrigerantes, Maurício Assumpção falou de seus planos. Ficou uma boa impressão, apesar de ele ser desconhecido. Alguns já tinham se acostumado a encontrá-lo nos estádios. E isso era bom sinal: um cartola nascido nas arquibancadas. De lá pra cá muita coisa mudou. Daqui de cima ele acompanha o desenrolar de conversas, alianças e confabalações. Um pessoal tem até se reunido no Degrau, restaurante ali na meiúca do Leblon que João frequentava com outro João, o Saldanha. O clima não tem andado bom nas hostes alvinegras. Quando passamos dessa pruma melhor, nos curamos do pessimismo, disse a João Ignácio. Meu estado constante é de confiança.

Foi eu acabar de dar essa injeção de ânimo no meu novo amigo e acabamos de receber uma visita inesperada. Para gente que já viveu tanto, era um garoto. Um câncer abreviou o muito que ainda tinha por viver. Mas ele parecia aliviado com o fim do sofrimento. Alexandre Paiva Chaves, mas pode me chamar de Montesca, se apresentou. Manuel Bandeira, Rubem Braga, Haroldo Barbosa, Paulinho Mendes Campos, Fernando Sabino, Jota Efegê e Sérgio Porto, que dividiam pileques, acharam o nome engraçado. Por que Montesca?, quiseram saber. “Eu era daqueles alunos de fundo de sala, péssimo em exatas, mas brilhante em humanas. Numa aula de história resolvi citar Montesquieu. A turma não perdoou. E o apelido ficou. Mudando de assunto, quem daqui é Botafogo?, perguntou o garoto. Paulinho, Fernando, João Ignácio e eu levantamos o braço. É que hoje o time joga no Maracanã, pra sair da crise. Noventa minutos depois, uma retumbante goleada sobre o criciúma, seis a zero, fez Montesca estufar o peito. “Sou pé-quente! Bastou eu subir pro Botafogo deslanchar”. Bom você ter trazido esse entusiasmo. Eu já estava há quase 35 anos longe desse amor. Mas não se engane, meu jovem. Por aqui também sofremos. Ué, você não é o otimista da hora, Lúcio? Deixa pra lá, João Ignácio. E pedimos o próximo uísque. Dali a quatro dias o Botafogo perdia, bisonhamente, para o goiás.

* Lúcio Rangel, 100 anos, é jornalista e crítico musical.
P.S.: Essa crônica mistura fatos reais do passado e delírios do presente.

Bibliografia: Rangel, Lúcio – Samba, jazz & outras notas: organização, apresentação e notas de Sérgio Augusto. Fonte: http://arquibabotafogo.com/blog/?p=2456

2 comentários:

MEL disse...

Coisa mais linda! Montesca, grande amigo meu!

Ruy Moura disse...

Paulo Marcelo Sampaio é exímio em criar estes cenários surreais e deliciosos.

Abraços Gloriosos, Mel.

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