sexta-feira, 16 de maio de 2014

O homem e as lendas

Biografia joga luz nos 73 anos de vida de João Saldanha, recupera seu lado de ativista político e narra suas histórias extraordinárias

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O médico ouviu a pergunta de Sonia, filha de João, no final de junho de 1990:

- Quantos meses de vida o papai ainda tem?
- Seis, no máximo.
- E se ele for à Copa do Mundo da Itália?
- Três.
- Ele vai.

João Saldanha chegou ao Aeroporto do Galeão em cadeira de rodas, embarcou contra a vontade de Adolfo Bloch, então dono da TV Manchete, e morreu às 20h45min do dia 12 de julho de 1990, em Roma. Sua última crônica foi batida com a máquina de escrever sob o colo no leito de um hospital romano. Entre as Copas de 1930 e 1990, ele esteve em todas.

Entre Roma e Porto Alegre, embora sempre gostasse de dizer que tinha nascido em Alegrete, o que lhe conferia um cartão de visita de "macho gaúcho", Saldanha viveu 73 anos. Suas sete décadas de vida estão inteiras e detalhadas na biografia João Saldanha: Uma Vida em Jogo (Companhia Editora Nacional, 552 páginas, R$ 55), do jornalista André Iki Siqueira, produto de três anos de pesquisa, com mais de 70 entrevistas.

Primeiro João conquistou Copacabana como filho de Gaspar Saldanha, o político maragato que recebeu um cartório na zona sul do Rio do então presidente Getúlio Vargas. Fez da areia sua sala de estar e ganhou todos os tipos de amigos, os que escancararam ao guri gaúcho o dolce far niente carioca, a suave indolência local. Aos poucos, João foi apalpando o novo território: das cariocas ao futebol, da praia ao Carnaval, mas sem perder a noção da realidade, das mudanças do mundo, do embate da época, capitalismo contra comunismo.

Azul, preto e branco no Sul, branco e preto (Botafogo) no Rio, João começou a flertar com o vermelho dos comunistas. Assumiu a militância, mesmo com o partido na clandestinidade. Organizou greves, viveu em São Paulo, trocou de nome, se apaixonou por uma operária (a perdeu por causa do partido) e ajudou clandestinamente os sem-terra no Paraná.

A mão forte do Partido Comunista o levou a outros países. Mais tarde, como radialista, rodou o mundo. As mulheres de João (casou cinco vezes) diziam que ele tinha duas paixões, o futebol e o PC - não necessariamente nesta ordem. Como homem do PC, ele levou um tiro à queima-roupa num encontro da UNE (o que lhe arrebentou um pulmão). Foi preso pela ditadura, torturado, humilhado, mas do alto do seu púlpito de homem de imprensa jamais deixou de falar dos crimes dos militares:

- É o maior assassino da história do Brasil. Ele matou amigos meus.

O ataque era dirigido a Emílio Garrastazu Médici, o general quatro estrelas que assumiu o comando do país em 1969. Os mesmos militares que concordaram com a convocação de João Saldanha para ser o técnico da Seleção, no mesmo ano, o sacaram depois que o Brasil garantiu vaga na Copa do México de 1970.

Saldanha era unanimidade nacional, menos entre a direita cavernosa. Ao perder o técnico, que inventara "As Feras de Saldanha", 22 jogadores dispostos a tudo, os militares ganharam outro inimigo na rádio, no jornal e na tevê.

João deixava o comando do antigo escrete canarinho para ser saudado logo depois como o melhor jornalista esportivo do país. Cargo que ocupou por duas décadas, misturando o futebol, o homem comum e a política. Ao voltar do exílio, em 1979, Luis Carlos Prestes ficou hospedado na casa de Saldanha, no Rio.

Atrás do jornalista, do técnico e do militante correm histórias extraordinárias. Muitas nascidas no cérebro galopante de Saldanha, outras nas cabeças férteis de amigos e colegas. Duas delas mostram o poder criativo das duas correntes. Uma pegava Saldanha descendo de pára-quedas na Normandia no Dia D, ao lado das forças aliadas do general Montgomery. Outra dizia que o gaúcho estava ao lado de Mao Tsé-tung quando o chinês entrou em Pequim após a derrota dos nacionalistas.

Sobre as histórias de Saldanha, a melhor frase é do seu grande amigo Nelson Rodrigues:

- Pior para os fatos, porque as verdades do Saldanha eram muito melhores.

Breve Saldanha estará num cinema perto de você, no documentário produzido por Siqueira e com imagens históricas do canal 100.

2 comentários:

Gil disse...

Rui,

Coincidentemente, ontem a noite vi esse filme na TV Canal Brasil!
Maravilhoso e claro que fiquei sonhando com o João Sem Medo Saldanha, nos dias de hoje, entrando em General Severiano.

O filme tem vários depoimentos e em um deles o Gérson, nosso canhotinha de ouro, questiona ele hoje comentando sobre o que foi feito do futebol brasileiro pelos empresários. Olha que o filme e antigo!

Abs e Sds, Botafoguenses!!!

Ruy Moura disse...

As críticas que o JS fazia ao futebol brasileiro já na década de 1960 para se modernizar contimnuam atuais pela simples razão de o Brasil ter parado no tempo em termos de estruturas e de modelo de futebol. Nenhum dos melhores países do futebol (Espanha, França, Itália, Inflaterra, Alemanha, Portugal) tem clubes grandes tão ruins como osm grandes clubes brasileiros. Era necessário investir em estruturas, modelos de gestão, escolas de treinadores, escolas de arbitragem, etc. O BRasil encostou-se à sombra da bananeira quando descobriu que tinha os melhores craques do mundo, mas depois de Ronaldinho Gaúcho (em declínio), Kaká (em declínio) e Ronaldo (aposentado), nem isso têm. O único brasileiro considerado como destaque de topo é o Neymar e, em minha opinião, continua sem ser de topo até comprovar que serve para o futebol europeu / mundial.

O João faz muita falta. É certo que o mundo anda com quem não está, e é senso comum dizer-se que o cemitério está cheio de insubstituíveis, e se isso é verdade até ao nível das pessoas muito inteligentes, já não é verdade quando estamos a falar do patamar dos gênios. Isto é, não tenho dúvidas que fazem muita falta à humanidade Leonardo da Vinci, Galileu, Einstein, Ghandi, Mandela e mais alguns. No futebol brasileiro sente-se a falta de um gênio sobre a matéria: João Saldanha. Quem nunca devia ter existido no futebol brasileiro: João Havelange.

Abraços Gloriosos.

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