No quinto artigo da série especial sobre
o Brasil nas Copas do Mundo, um instante mágico para o futebol mundial. Isso
mesmo, não apenas para nós brasileiros, mas após o jogo em questão o mundo
conheceria um verdadeiro fenômeno. Era o dia 15 de junho de 1958 quando
Garrincha fez sua estreia com a camisa da seleção brasileira no terceiro jogo –
isso mesmo, Garrincha era reserva nos dois primeiros jogos da copa de 1958 –
contra a temida seleção da União Soviética, apontada como o grande “fantasma”
daquela Copa devido o seu “futebol científico”. O Brasil, ou melhor, Garrincha
não se importou com nada disso. No final, vitória por 2x0.
O que se viu a seguir à espetacular
apresentação de Mané Garrincha foi o espanto coletivo, de torcedores do mundo
inteiro. No Brasil, imaginem, dois irmãos gênios da literatura escrevendo sobre
esse fato interplanetário...Foi o que fez a dupla Nelson Rodrigues e Mario
Filho. E para não ficar apenas nestes dois olhares, Literatura na Arquibancada
ainda resgata outras duas versões sobre o mesmo jogo, sobre o mesmo Mané,
feitas pelo jornalista Armando Nogueira e ainda de um companheiro de Garrincha,
dentro e fora dos gramados, Nílton Santos, a “Enciclopédia”.
Começamos com o artigo escrito por
Nelson Rodrigues, publicado na revista Manchete Esportiva, no dia 21 de junho
de 1958:
Descoberta de Garrincha
“E eis que, pela primeira vez, um “seu
Manuel” é o meu personagem da semana. Com esse nome cordial e alegre de
anedota, ele tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa.
Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia acabou nos três minutos iniciais.
Insisto: nos primeiros três minutos da batalha, já o “seu” Manuel, já o
Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a Sibéria e tudo o mais. E
notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o meu personagem não acredita em empate
e se disparou pelo campo adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando
outro e consta inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as
barbas de Rasputin.
Amigos: a desintegração da defesa russa
começou exatamente na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o
espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que vinha
subverter todas as concepções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Como
apalpar o impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário olhava
Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: “Isso não existe!”. E eu,
como os russos, já me inclino a acreditar que, de fato, domingo Garrincha não
existiu. Foi para o público internacional uma experiência inédita. Realmente,
jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um time, ou melhor, um
jogador começar a partida com um baile. Repito: baile, sim, baile! E o que
dramatiza o fato é que foi baile não contra um perna-de-pau, mas contra o time
poderosíssimo da Rússia.
Só um Garrincha poderia fazer isso.
Porque Garrincha não acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse
jogado contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a rainha
Vitória, o lord Nelson e a tradição naval do adversário. Absolutamente. Para
ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu, vale mais do que toda a Comunidade
Britânica. Com esse estado de alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os
russos. Os outros brasileiros poderiam tremer. Ele não e jamais. Perante a
plateia internacional, era quase um menino. Tinha essa humilhante sanidade
mental do garoto que caça cambaxirra com espingarda de chumbo e que, em Pau
Grande, na sua cordialidade indiscriminada, cumprimenta até cachorro.
Antes de começar o jogo, o seu marcador
havia de olhá-lo e comentar para si mesmo, em russo: “Esse não dá pra saída!”.
E, com dois minutos e meio, tínhamos enfiado na Rússia duas bolas na trave e um
gol. Aqui, em toda a extensão do território nacional, começávamos a desconfiar
que é bom, que é gostoso ser brasileiro.
Está claro que não estou subestimando o
peito dos outros jogadores brasileiros. Deus me livre. Por exemplo: cada gol de
Vavá era um hino nacional. Na defesa, Bellini chutava até a bola. E quando, no
segundo tempo, Garrincha resolveu caprichar no baile, foi um carnaval sublime.
A coisa virou show de Grande Otelo. E tem razão um amigo que, ouvindo o rádio,
ao meu lado, sopra-me: “Isso que o Garrincha está fazendo é pior do que xingar
a mãe!”. Calculo que, a essa altura, as cinzas do czar haviam de estar
humilhadíssimas. O marcador do “seu” Manuel já não era um: eram três. E, então,
começou a se ouvir, aqui no Brasil, na praça da Bandeira, a gargalhada cósmica,
tremenda, do público sueco. Cada vez que Garrincha passava por um, o público
vinha abaixo. Mas não creiam que ele fizesse isso por mal. De modo algum.
Garrincha estava ali com a mesma boa-fé inefável com que, em Pau Grande, vai
chumbando as cambaxirras, os pardais. Via nos russos a inocência dos
passarinhos. Sim: os adversários eram outros tantos passarinhos, desterrados de
Pau Grande.
Calculo que, lá pelas tantas, os russos,
na sua raiva obtusa e inofensiva, haviam de imaginar que o único meio de
destruir Garrincha era caçá-lo a pauladas. De fato, domingo, só a pauladas e
talvez nem isso, amigos, talvez nem assim”.
O irmão de Nelson Rodrigues, tão ou mais
genial do que ele, Mario Filho, viu assim aquele dia histórico:
Garrincha, o simples
“E eis o ‘seu’ Manuel ídolo da plateia
mundial. Onde se fala em futebol fala-se em Garrincha. E o espantoso é que nós,
que o conhecemos tanto, que somos, num certo sentido, íntimos dele, ou do
futebol dele, não nos espantamos com essa admiração incontida do europeu.
Esperávamos por ela e com aquela certeza do russo, de embasbacar o mundo,
quando soltou o Sputinik. Queríamos Garrincha no escrete por isso: para
provocar um choque. O que nos surpreenderia é que Garrincha não fizesse o que
fez contra os russos. Se ele fazia tudo aquilo aqui, com a gente cansado de
vê-lo, avalie contra o russo, que o ia ver pela primeira vez, o “seu” Manuel de
pernas tortas, que não se sabia direito como é que podia ficar em pé depois de
um drible.
(...)
Se lesse sueco, Garrincha havia de estar
espantado. Os sóbrios escandinavos descrevem a realidade do jogo Brasil x
Rússia dizendo que Garrincha montou um circo em Gotemburgo, que Garrincha
desmoralizou a defesa russa. Longe de Garrincha, querer desmoralizar alguém.
Aquele é o jogo dele, o drible dele, não há outro jeito. O João da Rússia, que
aliás foram três, que se defendesse, que não o deixasse passar. Às vezes,
embora seja raro, Garrincha perde um drible. Mas não perde a calma.
Talvez fosse melhor dizer a
simplicidade. Porque Garrincha, no fundo, é um simples. Quem debocha não é ele,
é o torcedor, é a plateia, que, mesmo sendo sueca, não resiste e, antes de
bater palmas, se dobra em gargalhadas. O João caído não ri, que não é hora de
rir. Olha para Garrincha. Se Garrincha fosse um Tinoco, um médio do Vasco de
trinta anos atrás, que vivia rindo, que tinha um tique nervoso que lhe repuxava
a boca e a abria e fechava em risinhos, não escaparia de uns bons tapas. Ou,
pelo menos, teria de embolar com todo João que lhe aparecesse.
Mas Garrincha não ri. É um Buster Keaton
do futebol. Os outros, os que estão vendo, é que tem a função de rir. E podem
rir à vontade, que, inclusive, pagaram para isso, embora Garrincha seja sempre
uma surpresa. Em Gotemburgo não esperavam por uma coisa dessas. Quem assistia
ao jogo Brasil x Rússia se considerou um privilegiado: por ter visto a exibição
do Brasil e de Garrincha. E considera-se, de um certo modo, lesado por não ter
visto Garrincha antes. Eis a pergunta sem resposta: por que Garrincha não jogou
contra a Inglaterra?”
Quase trinta anos depois, no livro “O
homem e a bola” (Editora Globo, 1986), o jornalista Armando Nogueira relembrou
o que aconteceu após a partida entre russos e brasileiros, entre Joões e
Mané...
“...depois de driblar quatro russos,
Garrincha parou diante deles, na linha de fundo, sonso, fingindo de morto,
fingindo de inocente. De vez em quando, provocava os adversários, oferecendo a
bola com breves toques de bico de chuteira. Parecia o rato-e-o-gato: os quatro
russos hipnotizados. Em volta, quarenta mil suecos rindo e batendo palmas. No
dia seguinte, os soviéticos, como bons vizinhos, foram visitar os brasileiros,
em Hindas. Reuniram-se no salão principal do hotel, aguardando os jogadores,
que não sabiam da visita e estavam todos dormindo a sesta.
Garrincha foi o primeiro a descer do
dormitório. Quando apareceu na porta, a delegação russa se levantou,
colocando-se em semicírculo no meio do salão. Garrincha veio entrando, devagar,
meio encabulado. Um russo destacou-se do grupo e avançou ao encontro dele; era
Kuznetzov, seu marcador no jogo da véspera. Garrincha cada vez mais encabulado,
Kuznetzov, seríssimo. De repente, o russo deu um pulo e atracou-se com
Garrincha, contendo-o num abraço de atleta. A delegação soviética estourou numa
gargalhada e começou a bater palmas, comemorando o grande milagre: seu
companheiro Kuznetzov, mil vezes driblado no jogo da véspera, conseguia, enfim,
segurar Garrincha pelo menos uma vez na vida”.
Nílton Santos e Garrincha
E não há como reviver essa história na
ótica de quem estava ali, ao lado do gênio Mané Garrincha. No livro
autobiográfico de Nilton Santos (Minha bola, Minha vida – Gryphus, 1998), a
“Enciclopédia”, amigo pessoal de Garrincha, relembra como foi o surgimento de
Mané como novo titular da seleção em um jogo de extrema importância contra os
russos:
“...Depois
da reunião com a Comissão, não nos interessou saber de quem foi a palavra
final. O importante é que eles entenderam que precisavam mudar o time. Mudaram
e nós fomos os campeões. Quando tive certeza da escalação do Garrincha, fui até
o seu quarto.
Ele estava ouvindo um
disco do Raul de Barros, e falei: ‘Mané, sabe que os homens vão te botar para
jogar?’ E ele: ‘Vão nada, se eu soubesse, nem vinha. Era melhor eu ter ficado
lá em Pau Grande, pelo menos estava jogando minhas peladas. Vim até aqui só
para ver os outros jogarem?’. Tornei a falar: ‘Não, Mané, pode se preparar que
você vai entrar, estou te garantindo isso. Vê bem como é que você vai jogar.
Está todo mundo de olho em você’. Ele respondeu: ‘Se eu jogar, você pode deixar
comigo’. Então, eu lembrei: ‘As seleções, daqui para frente, são mais fortes
ainda’. ‘Que nada, difícil é jogar contra o Olaria no campo deles’, respondeu.
Falava assim porque nos estádios de
antigamente, dos times pequenos do Rio, não havia alambrado e quando o pau
comia, a torcida entrava em campo. Na Europa, os campos eram bem melhores e o
povo mais civilizado. A próxima partida foi contra a seleção soviética. O time
foi assim: Gilmar, De Sordi, Bellini, Orlando e Nilton Santos; Zito e Didi;
Garrincha, Vavá, Pelé e Zagallo.
Um repórter sueco estava com o Armando
Nogueira quando ele veio conversar comigo. Ele escutou o meu desabafo,
espumando de raiva, porque a Comissão não queria escalar o Garrincha. Ao saber
da confirmação do Garrincha no time que jogaria contra a Rússia, ele não teve
dúvidas, chamou os leitores para o jogo, estampando essa manchete no seu
jornal: ‘Venham ver hoje o maior reserva do mundo’.
Garrincha entrou em campo como se
estivesse entrando para jogar uma pelada em Pau Grande. Enquanto estávamos
perfilados para ouvir o Hino Nacional, apreensivos com a partida, ele estava
relaxado e brincando. ‘Hei, o seu Carlito veio é?’. ‘O que você está falando?
Fique quieto’, respondei a ele. ‘Olha Nilton, o bandeirinha é careca e a cara
do seu Carlito’.
Fizemos um partidão. Para o Garrincha,
não fazia diferença jogar contra uma seleção mundial ou jogar contra um time do
campeonato carioca. Era tudo a mesma coisa, só mudavam as camisas. Ele queria
era jogar, não importava com quem. Então, destruiu o seu marcador, Kuznetsov.
Foi um ‘Deus nos acuda’, o time soviético se concentrou todo nele e o Vavá, um
goleador nato, ficou solto e fez os dois gols da vitória. Ao final do jogo, um
jornalista brasileiro, entrevistando o soviético, perguntou o que ele tinha
achado do Mané. O gringo respondeu: ‘Não achei’.
Para a imprensa
mundial, após esse jogo, o Garrincha não era apenas um jogador de futebol, era
um fenômeno da ponta direita, uma assombrosa aparição.
2 comentários:
Mané está merecendo um livro escrito por um Botafoguense...
É verdade, Émerson. Os csathartiformes têm a mania de escrever livros relacionados com o Botafogo, e depois saem porcarias com a do ruy castro.
Abraços Gloriosos.
Enviar um comentário