terça-feira, 6 de maio de 2014

O sabe-tudo

por Sérgio Cabral

“João Saldanha me impressionava porque, além de saber de tudo, era exatamente o que se espera de um sujeito espirituoso, como demonstrou, por exemplo, naquele dia (não me canso de lembrar desta tirada) em que, após um jogo Brasil x Iugoslávia, em que Zico teve a sua melhor atuação na seleção brasileira, o narrador Waldir Amaral só lhe deu 30 segundos para os comentários. Mas ele não precisava de tanto tempo: “O Brasil venceu porque Zico se chama Zico. Se o nome dele fosse Zicovic, a Iugoslávia seria a vencedora”.

Era muito pessoal na interpretação dos fatos. Vendo-me protestar, desde a década de 1980, todos os anos, contra a aceleração do ritmo dos sambas-enredo, o que os transformou em autênticas marchinhas carnavalescas, deu-me uma explicação que só ele poderia dar: “O samba passou a correr depois que o desfile passou a ser feito na rua Marquês de Sapucaí. Como os compositores citam muito o nome da rua nas letras, os sambas viram marchas, porque Sapucaí é uma palavra que conduz à marcha, porque é oxítona. Para o samba voltar a ser samba de verdade, o desfile tem de ser feito na avenida Presidente Vargas ou até mesmo na rua Almirante Cochrane”.

Outra vez, numa palestra para estudantes universitários, uma aluna quis saber dele o que achava do futebol feminino. Pensou muito, indicando que se tratava de uma questão embaraçosa pelo menos para ele. Mas resolveu responder: “Sou contra”. As moças manifestaram surpresa e decepção. João Saldanha, um cara sem preconceitos, como poderia ser contrário ao futebol feminino? Mas ele explicou: “O sujeito tem um filho, que leva a namorada para conhecê-lo. O pai faz a pergunta clássica: ‘Você trabalha ou estuda?’ ‘Trabalho’, ela responde. ‘Em quê?’, quer saber o velho. ‘Sou zagueira do Bangu’”. Conclui Saldanha: “Pega mal, vocês não acham?”.

Em 1968, quando a União Soviética invadiu a Tchecoslováquia, os intelectuais comunistas não gostaram, mas queriam uma explicação. Discutiam o tema nas mesas do Degrau, cada qual encontrando as razões mais complicadas expostas com aquela linguagem sofisticada dos conhecedores do materialismo dialético, quando chegou João Saldanha, que foi imediatamente abordado:

– O que levou a União Soviética a fazer uma coisa dessas, João? – perguntou um dos intelectuais.

João não pensou muito:

– Depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa Central é a Zona do Agrião. Quando a bola divide por ali, a União Soviética entra de sola.

E os intelectuais comunistas (pelo menos, aparentemente) ficaram satisfeitos com a explicação.

Tinha uma certa fama de mentiroso porque sabia de tudo. E sabia mesmo. Viajávamos na ponte aérea para São Paulo e, na altura da cidade de Parati, o avião começou a sacolejar muito. Explicou-me que, naquela região, o vento que vinha não me lembro de onde se juntava a um outro saído também não me lembro de onde, causando a tormenta que os pilotos de avião conheciam muito bem. Tempos depois, um piloto de avião me disse que realmente tal fenômeno ocorre muito por ali.

Mas quem não acreditava nele dançava, como naquela madrugada em que a seleção brasileira chegou a um hotel distante do centro de Belgrado e os jornalistas morriam de fome, mas o restaurante do hotel estava fechado. “Só há um lugar onde vocês podem encontrar comida. Peguem esta rua em frente e, depois de atravessar a ponte, sigam pela direita e entrem na primeira à esquerda.

Na segunda esquina, à esquerda, tem uma casa em que terão de bater na janela até serem atendidos por uma velhinha. Peçam desculpas a ela pela hora e digam que são brasileiros e estão com muita fome. A velhinha, que entende português, fará com muito prazer um jantar que vocês vão adorar”, foi a orientação do comentarista realmente técnico. Só a metade dos jornalistas acreditou em João e, por isso, jantaram muito bem. Os céticos dormiram com fome, mas, nos dias seguintes, tiveram de voltar à casa da velhinha, sempre aberta para os brasileiros.

Eu gostava de conviver com João e ele sabia disso, tanto que me fazia confidências como a alegria que ficou quando descobriu, perdida na sua papelada, uma fotografia do tempo em que jogou no Botafogo (se não me engano, nos juvenis). Finalmente, um documento provando o que sempre dizia, ou seja, que jogou no seu querido Botafogo, coisa que muitos colegas não acreditavam. Mas a alegria diminuiu quando descobriu que a foto mostrava também o placar da partida: Vasco 3 x 2 Botafogo. Pegou uma gilete e raspou o placar, como me confessou na dedicatória de um livro dele.

Dias antes da Copa do Mundo de 1990, estava na fila dos passageiros que iriam pegar o avião para a Itália, quando ele chegou conduzido por uma cadeira de rodas. Seu estado de saúde precário não recomendava uma viagem, mas pior seria se fosse obrigado a permanecer no Brasil. Quem também estava na fila era o jornalista Sebastião Neri, que havia surpreendido todos os amigos nas eleições de 1989 ao apoiar a candidatura de Fernando Collor.

– Tudo bem, João? – quis saber Neri.

– Tudo bem. Estou sentado nesta cadeira só de sacanagem – foi a resposta de um sujeito indignado com a troca de lado do colega.

Com meia hora de viagem, João teve uma das suas apavorantes crises respiratórias e o comandante quis até aterrissar em Recife, mas ele protestou e, de fato, pouco depois estava recuperado. Recebia notícias dele, durante a Copa, passadas pelos colegas da TV Manchete. Terminada a Copa, fui até Viena em viagem de turismo e, na volta, peguei o avião para o Rio de Janeiro. A bordo, o corpo de João Saldanha.

Foi a viagem mais triste da minha vida.”

Apesar dos vários livros com coletâneas de seus textos, João Saldanha não tinha até pouco tempo uma merecida biografia. Em 2007, André Iki Siqueira nos brindou com um livro espetacular sobre a vida do mais polêmico jornalista esportivo do país: “João Saldanha, uma vida em jogo” (Companhia Editora Nacional). Tão bom que acabou virando filme, “João” (documentário em longa-metragem), também pelas mãos de Iki, co-diretor da obra.

Como afirma Iki Siqueira, João era “o comentarista que o Brasil inteiro consagrou. Um revolucionário em todos os sentidos”. A obra de Iki Siqueira é muito mais do que uma biografia, mas um “romance de aventura, uma história de tirar o fôlego, em que fato e ficção se confundem para criar um personagem inesquecível, o João Sem Medo - um grande brasileiro”.

Sinopse do livro

"João Saldanha - uma vida em jogo", de André Iki Siqueira, é a biografia do mais consagrado jornalista esportivo do país. Você vai surpreender-se com a história do menino que brincava carregando revólver de verdade na cintura e peleava imitando o pai na luta entre maragatos e chimangos, no Rio Grande do Sul; do militante comunista que enfrentou a polícia de peito aberto e ganhou uma bala que lhe perfurou o pulmão e que ajudou a organizar a guerrilha camponesa de Porecatu, no Paraná; do técnico que virou unanimidade nacional ao levar uma seleção desacreditada a classificar-se para a Copa de 1970 e de sua controversa demissão pouco antes daquele Mundial.

Como num romance de aventura, é uma história de tirar o fôlego, em que fato e ficção se confundem para criar um personagem inesquecível, o João Sem Medo - um grande brasileiro”.

Sobre André Iki Siqueira

Carioca, jornalista, vascaíno, autor do livro "João Saldanha, uma vida em jogo" e co-diretor do documentário "João", longa-metragem sobre a vida de João Saldanha. Viciado em futebol. Consultor de comunicação e marketing; roteirista e diretor de tv e cinema. Músico e compositor.

Literatura na Arquibancada recomenda ainda a leitura da entrevista feita por Geneton Moraes com João Saldanha.


Há ainda o programa Roda Viva, da TV Cultura, onde João revela muitas das polêmicas que se envolveu.

2 comentários:

Gil disse...

Rui,

Nos meus sonhos vejo o João Sem Medo Saldanha invadindo General Severiano, dando uns tiros e expulsando os incompetentes do nosso Botafogo!

Pobre, em todos os sentidos, do atual Botafogo!
Pobre de nós, Torcedores!

Abs e Sds, Botafoguenses!!!

Ruy Moura disse...

É mesmo esse que o Maurício Assumpção estava precisando por uma hora. Uma hora bastava para o Saldanha correr com ele pelos fundilhos das calças. Para sempre. Nunca mais poria lá os pés se o Saldanha fosse vivo.

Abraços Gloriosos.

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