por RAUL MILLIET FILHO
Botafoguense, mestre pela UERJ, doutor pela USP, professor e pesquisador
que prioriza a cultura popular
Togo Renan Soares, o Kanela, não foi
apenas o maior técnico da História do basquete brasileiro ou do basquete mundial
como declarou esta semana Rubén Magnano. Foi um homem à frente do seu tempo.
Maior do que os números impressionantes de sua ficha técnica.
Dirigindo a seleção masculina,
conquistou o bicampeonato mundial (1959 e 1963), a medalha de bronze nas Olimpíadas
de Roma em 1960, foi decacampeão carioca pelo Flamengo, dentre vários outros
títulos.
Kanela era eclético, inquieto,
disciplinado e explosivo.
Técnico de futebol (Botafogo, Bangu,
E.C. Brasil e Flamengo) e de remo, sua vida se confunde com a História do
esporte brasileiro na transição do amadorismo para o profissionalismo.
Estrategista brilhante, metódico, um
líder à beira da quadra e do campo, respeitado por atletas e dirigentes. Sem
saber nadar, foi técnico de water polo, campeão pelo Botafogo em 1944.
Paraibano, nascido em 1906, muda-se para
o Rio de Janeiro com 11 anos, ingressando no Colégio Militar, instituição que
lhe apresentou o mundo dos esportes.
Em 1921, torna-se sócio do Botafogo,
onde pela sua canela branca e fina, ganha o apelido que o acompanhou para
sempre.
“Eu comecei minha vida esportiva jogando
e torcendo para o Botafogo...eu entrei para sócio-atleta, mas praticava futebol
muito mal, era um mau atleta em questão de habilidade. A minha vida era: de
manhã, o Botafogo de Regatas, e à tarde, o Botafogo de Futebol.” (Depoimento a
Pedro Zamora- em “A Era Kanela”)
Em 1925, Kanela é convidado por Carlito
Rocha, então diretor geral dos esportes do clube, para dirigir o time juvenil
de futebol do Botafogo, conquistando naquele mesmo ano, aos 19 anos, o título
de campeão carioca invicto.
Começava ali sua carreira vitoriosa de
técnico.
Poucos sabem, mas ele foi o responsável
por revelar Domingos da Guia para o futebol. No início da carreira, Domingos
jogava no meio campo do Bangu. O centro-médio da época. Kanela
convenceu-o a recuar e jogar como zagueiro de área. Domingos tornou-se o maior
zagueiro da História do futebol brasileiro, um dos grandes do futebol mundial.
No ano de 1984, em uma longa
conversa/entrevista que tivemos, puxei o assunto sobre Domingos da Guia. Kanela
lembrou-se das afirmações de Gilberto Freyre em seu prefácio ao livro clássico
de Mário Filho, “O negro no futebol brasileiro” O escritor fala do
estilo “um tanto álgido” do futebol de Domingos, quase sem floreios e jogadas
de efeito. Para ele, e para o próprio Kanela, Domingos da Guia tinha as
qualidades da moderação, sobriedade, sem perder a criatividade.
Pude perceber que a definição de
Gilberto Freyre para Domingos da Guia caía como uma luva em Kanela: “Um
apolíneo entre dionisíacos”.
Em outro texto, Gilberto Freyre lembra
as características dos apolíneos, relativas a Apolo, deus grego caracterizado
pelo equilíbrio, disciplina e comedimento. E dos dionisíacos, de Dionísio, deus
grego dos ciclos vitais, do entusiasmo, da alegria e da inspiração
criadora. Dionísio ou Baco, para os romanos.
A decisão de Kanela de recuar Domingos
da Guia para a zaga revela sua ousadia e criatividade, próprias de um
dionisíaco e abre caminho para conhecermos outra história, ainda mais
desconhecida.
Uma história que diz respeito à marcação
da defesa no início dos anos 30. Só o espírito observador e inquieto de Kanela
poderia explicar porque ele foi um dos primeiros a estudar e aplicar no Brasil
a segunda lei do impedimento de 1925. Ele e Gentil Cardoso.
Esta mudança da lei do impedimento
representou um divisor de águas no futebol mundial, tornando este esporte mais
interessante, rápido e alegre.
A partir daí, era imprescindível recuar
mais um jogador e formar uma linha de 3 na zaga. No Brasil poucos enxergavam
isso.
Ao recuar Domingos da Guia, Kanela foi
profético e certeiro, não só revelando um grande craque, mas dando um passo
decisivo para modernizar taticamente o nosso futebol.
Ao tomar esta atitude, Kanela teve a
frieza e o equilíbrio de um apolíneo e a inspiração criadora de um dionisíaco.
E ninguém melhor do que Domingos da Guia para executar esta função até então
desconhecida no futebol brasileiro. Frio, conhecia como ninguém a arte da
colocação em campo, dono de passes precisos e antecipações quase perfeitas.
Em 1925, os times europeus começaram a
jogar no 1-3-2-2-3, o famoso WM, inventado por Herbert Chapman, treinador do
Arsenal.
No Brasil, continuamos por mais de 10
anos jogando no antiquado 1-2-3-5. Perdemos alguns títulos importantes, como o
da Copa do Mundo de 1938, por este atraso tático.
Kanela e Gentil Cardoso foram pioneiros
e dirigiram o Bangu e o Bonsucesso, respectivamente, no esquema tático
inovador. Embora não tenham tido força e prestígio para implantar esta nova
filosofia de jogo no país, abriram e pavimentaram o caminho para o técnico
húngaro Dori Kurschner realizar esta e outras mudanças a partir de sua passagem
pelo Flamengo e Botafogo, entre 1937 e 1940.
Kanela e o Botafogo campeão na
excursão de 1935/1936
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No futebol juvenil do Botafogo,
Kanela foi campeão em vários anos. Em 1935-1936 dirigiu o time principal
do clube em uma excursão ao México e EUA, voltando invicto. Em 1942, ainda no
Botafogo, o técnico Kanela inicia a jornada do tricampeonato de futebol amador,
com um time que fez história. Atuaram craques como Paulo Tovar, Otávio de
Morais e Augusto Willemsen. Cabe lembrar a grande popularidade e importância do
futebol amador e de seus campeonatos no Rio de Janeiro nas décadas de 1930 e
1940.
Em 1933 assume o basquete do Botafogo,
em paralelo às suas funções de técnico do futebol juvenil. Foi tricampeão
carioca de basquete (1935-1937), campeão em 1939 e tetracampeão de 1942 a 1945.
Assim como nos outros esportes, Kanela
afirmava que foi um bom técnico, mas um péssimo jogador de basquete.
Togo fica no Botafogo de 1921 até 1947,
quando após mais uma de uma série de desavenças com Carlito Rocha, abandona o
clube e vai para o Flamengo.
Esta mudança será decisiva para a sua
vida e para o basquete brasileiro.
Enquanto no Botafogo, como era comum
naqueles tempos de amadorismo (só o futebol se profissionalizara em 1933),
Kanela se dividia entre o futebol, water polo e basquete; no Flamengo, a partir
de 1950, passa a dedicar-se quase que exclusivamente ao basquete.
Revolucionou o treinamento do basquete
brasileiro, valorizando os contra-ataques e introduzindo os arremessos da
“zona-morta”. Decretou o fim da “zona-morta”, fazendo seus atletas executarem
esses arremessos à exaustão.
A preparação física, o condicionamento
atlético e as inovações no campo tático eram observados atentamente por Kanela,
que foi precursor do treinamento seriado no basquete nacional.
Foi um ídolo mesmo numa época em que a
seleção brasileira era composta por craques como Algodão, Wlamir Marques e
Amaury Passos.
No Flamengo era comum o ginásio – que
hoje leva seu nome – ficar lotado para ver o time de Kanela treinar.
Respirava basquete o tempo todo. Era
daquele tipo de técnico com estilo professoral, que a toda hora parava o treino
para explicar o jeito certo de executar determinada jogada. Como no caso dojump,
principalmente após as mudanças das regras limitando a posse de bola até o
“chute”.
Estreou como técnico da seleção
brasileira de basquete em 1951. Dirigiu a seleção em quinze competições: sete
vezes campeão; três vezes vice; quatro vezes terceiro lugar e uma vez sétimo
lugar.
Em 1954, concentra a seleção brasileira
de basquete durante três meses na fase de preparação para o campeonato mundial
no Rio de Janeiro, na inauguração do Maracanãzinho. O Brasil conquista o
vice-campeonato.
Ele considerava este momento como uma virada
nos rumos desse esporte.
“Em 1954 é que a coisa começou a mudar.
Nós trouxemos oito cariocas, oito paulistas, dois gaúchos para um treinamento
sério. Neste treinamento apareceram Wlamir e Amaury.” (Entrevista concedida ao
Projeto Memória do Esporte)
Amaury tinha apenas 19 anos e formou, ao
lado de Wlamir, uma dupla de ouro para o basquete.
O basquete masculino brasileiro
conquistou três medalhas de bronze em olimpíadas: em Londres (1948); Roma
(1960) e Tóquio (1964). Embora só tenha sido técnico em Roma, o talento de
Kanela esteve presente tanto em Tóquio (a base da seleção de basquete tinha
sido montada por ele no bicampeonato mundial de 1963) quanto em Londres.
Se nos treinamentos era um estrategista,
dentro de quadra ele se transformava. Com um temperamento explosivo,
envolvia-se constantemente em brigas e confusões, principalmente com árbitros,
dirigentes e torcedores adversários.
Foi um personagem retratado pela pena
privilegiada dos maiores cronistas esportivos brasileiros.
Nelson Rodrigues, em O Tapa
Cívico, exaltou a bofetada de Kanela no árbitro uruguaio, durante o jogo
histórico contra a União Soviética em pleno Maracanãzinho, no Mundial de 1963.
Em 2006, o centenário de nascimento de
Kanela quase não foi lembrado. Agora, no dia 12 de dezembro: 20 anos do seu
falecimento.
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